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21 abril 2023

Lógica positiva, de Augusto Comte

Digitalizamos e postamos no portal Internet Archive o opúsculo Introdução geral ao estudo da lógica, ou Matemática, organizado por Luís Bueno Horta Barbosa em 1933.

Essa pequena e interessante obra consiste na seleção, indexação e tradução de trechos da "Introdução" à Síntese subjetiva, publicada por Augusto em 1855. Essa "Introdução", em particular, trata, em um primeiro momento, da definição da lógica positiva, bem como de seus meios, seus objetivos, sua história filosófica e suas relações com o conjunto dos conhecimentos abstratos. Em um segundo momento, esse capítulo aborda a filosofia da Matemática, conforme entendida por Augusto Comte a partir da síntese subjetiva.

O arquivo encontra-se disponível, em versão PDF, aqui: https://archive.org/details/augusto-comte-logica-positiva.





Definição da lógica positiva (Augusto Comte, na sua "Síntese subjetiva")

Reproduzimos abaixo alguns trechos iniciais da grandiosa última obra de Augusto Comte, a sua Síntese subjetiva (1855), que, planejada para ter quatro volumes, ficou apenas em seu volume inicial, dedicado à lógica.

Os trechos reproduzidos abaixo são alguns dos que foram inicialmente selecionados, indexados e traduzidos por Luís Bueno Horta Barbosa; eles apresentam o conceito positivo de lógica, com as necessárias reflexões teóricas e históricas que o justificam. Como se verá, a partir de um entendimento real do ser humano (afetivo, prático e intelectual, em sua interação com o mundo e com o próprio ser humano), a lógica não é reduzida à operação intelectualista de símbolos, mas é ententendida como um instrumento que se vale de diversos recursos para auxiliar o ser humano em suas atividades.

*   *   *

Instituição da Lógica Positiva[1]

 

Definição normal da lógica

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal[2]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na pagina 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao fim que assinala” (Síntese subjetiva, p. 26).

 

Apreciação dos meios lógicos

“Considerada sob o primeiro aspecto, basta que essa definição se ache convenientemente ligada á teoria fundamental da natureza humana. Segundo esta teoria, o conjunto do cérebro concorre para as operações quaisquer da sua região especulativa. Elaboradas pelo espírito sob o impulso do coração assistido do caráter, todas as nossas concepções devem trazer a marca destas três influências. À frente dos meios lógicos, é preciso pois colocar os sentimentos que, por fornecerem ao mesmo tempo a fonte e o destino dos pensamentos, servem-se da conexidade das emoções correspondentes para combiná-los. Nada poderia substituir esta lógica espontânea, à qual se devem sempre, não somente os primeiros sucessos dos espíritos sem cultura, mas também os mais poderosos esforços das inteligências bem cultivadas.

Não podemos sistematizar a lógica, como não podemos regular o conjunto da existência humana, senão subordinando os dois outros meios essenciais a este processo fundamental, único comum a todos os modos e graus do entendimento. As operações intelectuais, limitadas a este regime, poderiam ser fortes e profundas; mas ficariam vagas e confusas, porque ele não comporta a precisão e a rapidez exigidas por tais operações, visto a impossibilidade de se tornar ele bastante voluntário. Juntas aos sentimentos, as imagens tornam o espírito mais pronto e mais nítido, por ser o uso delas mais facultativo. Elas combinam-se com eles, mediante a ligação natural entre cada emoção e o quadro da sua realização. Toda a eficácia delas resulta desta conexidade, que permite ás imagens evocar os sentimentos dos quais elas inicialmente derivaram.

Sob tal assistência, o coração institui um segundo regime lógico mais preciso e mais rápido do que o primeiro, mas menos seguro e menos poderoso, no qual as concepções formam-se pela combinação das imagens. Uma espontaneidade menor distingue este modo do precedente e não lhe permite uma equivalente generalidade, embora ele surja sem cultura. Nunca ele basta para tornar as deduções, as induções, ou as construções, tão prontas e tão nítidas quanto o exige o seu destino estético, teórico ou prático. Elas só podem preencher estas condições juntando o socorro dos sinais propriamente ditos ao poder dos sentimentos assistidos das imagens. Tal é o complemento necessário da verdadeira lógica, inteiramente esboçada na animalidade, mas só desenvolvida pela sociabilidade” (Síntese subjetiva, p. 27).

 

A teoria lógica dos metafísicos

“Devemos considerar a teoria lógica dos metafísicos como caracterizando-lhes ao mesmo tempo a impotência para regularem o estado social e inaptidão para conceberem-na. Antes do surto deles na Grécia, o teologismo tinha tido os seus vícios teóricos espontaneamente compensados pelo seu destino prático, embora o seu método seja tão pessoal quanto o do ontologismo. Todos os perigos desse método desenvolveram-se quando a cultura intelectual passou dos padres para os filósofos, os quais, apesar das suas tendências pedantocráticas, não puderam instituir a especulação abstrata senão afastando o ponto de vista coletivo. Uma intuição necessariamente individual, na qual a inteligência esquecia ao mesmo tempo a sua subordinação ao sentimento e o seu destino para a atividade, foi então erigida em estado normal da razão teórica. Nada pode caracterizar melhor esta degradação do que a sistematização da lógica pelo emprego exclusivos dos sinais, afastando os sentimentos e mesmo as imagens. Ela constituiu a primeira e principal manifestação da doença ocidental, na qual o homem isola-se da Humanidade” (Síntese subjetiva, p. 31).

 

A elaboração dos pensamentos pelos sentimentos auxiliados pelos sinais e pelas imagens

“Em virtude desta explicação, a sistematização lógica é devida, tanto quanto a unidade geral, a preponderância do coração sobre o espírito. Devemos considerar os sinais e as imagens como auxiliares dos sentimentos na elaboração dos pensamentos. Esta assistência acha-se assim fornecida pelas duas partes essenciais do aparelho intelectual, respectivamente consagradas uma à concepção, a outra à expressão, sendo que esta exige sempre a ação. Toda meditação que não produz imagem é incompleta, e toda contemplação torna-se confusa sem semelhante guia. Uma e outra são, pois, caracterizadas pelas imagens, cuja consideração, ativa ou passiva, forma o principal domínio do espírito interiormente dirigido pelo coração. Uma última função torna-se então necessária para transmitir ao exterior o resultado geral da elaboração realizada no interior. Referidos a este destino, do qual se deriva a sua reação mental, os sinais adquirem a sua principal dignidade, visto caber-lhes o privilegio de instituir, entre o Grão-Ser e os seus servidores, as comunicações que proporcionam, a estes os elementos, àquele o produto, do trabalho intelectual” (Síntese subjetiva, p. 33).

 

Apreciação do objetivo da lógica

Disciplinar a inteligência

“Considerada quanto ao seu fim, a lógica teve de ser ao mesmo tempo a mais antiga e a mais viciosa das construções filosóficas. Ela quis diretamente regular o elemento médio da existência humana separando-o da sua fonte social e do seu destino prático. Ciência, a lógica pôs o aforismo fundamental que subordina a ordem intelectual à ordem física[3], sem daí concluir que o conhecimento da primeira exigia a apreciação da segunda, cujo estudo achava-se então limitado aos fenômenos mais simples. Arte, ela não pôde instituir mais do que um vão aparelho de regras metafísicas, que não comportavam outra eficácia, senão a de compensar, por alguns hábitos de generalidade, a especialidade necessária da positividade preliminar. Por ter renunciado ao domínio poético, a lógica, na sua exclusiva preocupação da verdade, não tardou a sentir-se incapaz de iniciativa, e contentou-se com sistematizar a aptidão, mais nociva do que útil, de provar sem achar” (Síntese subjetiva, p. 34).

Impossibilidade de disciplinar a inteligência antes do positivismo

“Na realidade não se podia instituir a lógica antes que a construção da religião positiva tivesse essencialmente terminado a iniciação humana. Mas alcançado esse termo, uma solução decisiva torna-se possível, e mesmo oportuna, para o grande problema que a Idade Média pôs, por um esboço provisório, visando regular as forças quaisquer” (Síntese subjetiva, p. 35).

Em que consiste a dificuldade dessa solução

“Vista no seu conjunto, a dificuldade consiste sobretudo em disciplinar o espírito, já porque ele foi o elemento mais perturbado pela revolução moderna, já porque é preciso colocá-lo em condições de assistir ao principio regenerador na sistematização universal” (Síntese subjetiva, p. 35).

Verdadeiro destino da inteligência

“Reduzida ao seu verdadeiro destino, a inteligência deve ajudar o sentimento a dirigir a atividade: este oficio basta para instituir o regime mental. Então o espírito, renunciando à estéril independência sonhada pelo orgulho metafísico, coloca a sua verdadeira grandeza na digna submissão à ordem fundamental que nós devemos suportar e modificar. Guiada pelo espetáculo exterior, a inteligência adapta a marcha das suas concepções à marcha dos fenômenos, cujos estados futuros ou passados podem ser assim julgados por meio das nossas operações interiores, visto a perpetuidade das duas economias paralelas. Ela reconheceu que esta correspondência nunca pode ser absoluta; ela aspira instituí-la apenas no grau que o exigem as nossas verdadeiras necessidades” (Síntese subjetiva, p. 35).



[1] Seleção, indexação e tradução de Luís Bueno Horta Barbosa (Introdução geral ao estudo da lógica, ou matemática. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1933). Os trechos citados são extraídos de Augusto Comte (Synthèse subjective, Paris, 1855).

[2] Referência ao Sistema de política positiva, cujo volume 1 é de 1851.

[3] Referência à observação de Aristóteles de que “não existe nada na inteligência que não provenha dos sentidos”, correspondente à primeira metade da 4ª lei de Filosofia Primeira, que é completada com a noção de Kant: “exceto a própria inteligência”.

16 novembro 2022

Luiz Hildebrando de Horta Barbosa: Introdução à filosofia das ciências

A Revista do Serviço Público, publicada desde 1939 pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (o DASP) e atualmente a cargo da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP, subordinada ao Ministério da Economia), trouxe a lume em 1950 um artigo da autoria do positivista ortodoxo brasileiro Luiz Hildebrando de Horta Barbosa. 

Luiz Hildebrando integrava a família Horta Barbosa, que teve inúmeros de seus membros integrantes da Igreja Positivista do Brasil. Engenheiro de formação, serviu na Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi o responsável técnico pela criação da Ilha do Fundão e pela construção dos prédios originais que lá foram instalados. Além disso - muito além disso -, ele desenvolveu uma intensíssima atividade sacerdotal, no sentido positivista da expressão, ministrando dezenas de cursos populares de ciências, de filosofia, de história etc.

Por ocasião de seu falecimento, em 1973, alguns positivistas elaboraram o seu elogio fúnebre, que pode ser lido aqui. É desse elogio fúnebre que tiramos a foto reproduzida abaixo.

Voltando ao artigo publicado na Revista do Serviço Público: ele intitula-se "Introdução à filosofia das ciências" (Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, ano XIII, v. 1, n. 2, p. 13-18). Recuperado esse artigo, digitalizado e posto à disposição ao longo de 2022, o texto pode ser lido aqui.




Importância da visão de conjunto

No dia 11 de Frederico de 168 (15.11.2022) fizemos uma prédica positiva; na parte da leitura comentada do Catecismo positivista, concluímos a teoria geral do culto, tratando da influência intelectual do culto positivo. Já na parte de sermão, tratamos da importância da visão de conjunto para o ser humano, bem como da rejeição contemporânea da visão de conjunto pelo pós-modernismo e pela política identitária.

As anotações que serviram de base para a (longa) exposição sobre a importância da visão de conjunto estão disponíveis abaixo. A exposição oral está disponível aqui (no canal Positivismo do Youtube) e aqui (no canal Apostolado Positivista do Facebook), a partir de 53' 30".

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Importância da visão de conjunto

 

-        A visão de conjunto permite que se entenda a realidade

o   A visão de conjunto tem conseqüências morais, intelectuais e sociais:

§  A visão de conjunto oferece sentido ao mundo e à vida

§  É somente por meio da visão de conjunto que se pode explicar a sociedade e os indivíduos, ao inseri-los em “contextos”

·         Ao entendermos a totalidade, sabemos onde fica cada coisa e, portanto, sabemos onde cada um de nós fica, está e como se relaciona com os demais

§  A verdadeira moralidade só é possível com base na visão de conjunto:

·         Somente a partir da visão de conjunto é possível definir o que é bom e o que é ruim, o que é justo e o que é injusto

o   Inversamente, a ausência de visão de conjunto, ou a negação da visão de conjunto, resulta em que a realidade torna-se incoerente e irracional e qualquer discussão sobre o que é certo e o que é justo torna-se impossível (quando não irrelevante)

§  A irracionalidade e a incoerência resultantes da ausência de síntese tem resultados muito claros: a perda do sentido da vida, a confusão mental, a perda de referências morais (em termos individuais e coletivos)

§  As consequências acima resultam, por sua vez, em aumento dos conflitos sociais e da violência social e política, em guerras (internacionais e/ou civis), no fanatismo e na intolerância, no adoecimento mental e físico

§  A rejeição da visão de conjunto, portanto, é ao mesmo tempo imoral, irracional e antissocial (e antipolítica)

-        Afirmar a possibilidade, a necessidade e até mesmo a indispensabilidade da visão de conjunto torna-se ainda mais urgente desde os anos 1960-1970 no Ocidente, com o desenvolvimento do pós-modernismo

o   O pós-modernismo foi elaborado na França mas logo foi importado pelos Estados Unidos; na França ele manteve-se como uma modinha academicista, mas nos EUA ele desenvolveu-se, aprofundou-se e derivou para a prática política, na forma da política identitária

o   O pós-modernismo nega, rejeita, despreza, impede as visões de conjunto, que ele chama de “visões totalizantes” ou de “grandes narrativas”

§  Os historiadores também desenvolveram suas próprias formas de desprezo pelas visões de conjunto

o   De acordo com esses pensadores, não há motivo para elaborar-se visões de conjunto, pois objetivamente elas seriam impossíveis e, além disso, elas seriam desnecessárias

o   Para eles, portanto, o bom é a fragmentação das idéias, a justaposição incoerente e irracional de concepções puramente subjetivas

§  A partir desse ultrassubjetivismo, o pós-modernismo afirma que não existe realidade objetiva, mas apenas “narrativas”

o   Essa é a própria definição e afirmação do que Augusto Comte chamava de “anarquia”, ou seja, a ausência de valores e concepções compartilhados

-        Ao longo de toda a história da Humanidade, o ser humano procurou elaborar visões de conjunto, ou sínteses

o   Essas sínteses foram chamadas inicialmente de “religiões” e, depois, também (ou apenas) de “filosofias”

o   Como se sabe, as metafísicas sempre atuaram como corrosivas das sínteses anteriores, mas, entre cada grande transição, a metafísica do momento já introduzia elementos da nova síntese

§  Com o início da mais recente grande fase de transição (após a Idade Média), a metafísica introduziu a sua corrosão, mas apresentando um caráter ambíguo: por um lado, auxiliando a ciência; por outro lado, desenvolvendo a pura corrosão

§  No século XVIII, algumas filosofias que tinham ainda um pé na metafísica afirmaram o espírito positivo e a visão de conjunto: foram os enciclopedistas, especialmente na França e na Escócia

§  Vale notar que mesmo algumas metafísicas modernas sem muito espírito positivo e/ou com forte espírito corrosivo (“crítico”) estimularam a visão de conjunto: Hegel e até Marx tiveram essa preocupação

o   Entretanto, algumas ciências – não por acaso, as ciências superiores – exigem a visão de conjunto

§  Essa exigência é inaugurada pela Biologia, seja em termos globais, com a Ecologia, seja em termos individuais, com o estudo da inserção dos órgãos no corpo

§  A Sociologia e a Moral também exigem a visão de conjunto

§  Vale lembrar, entretanto, que a ciência é ambígua: se por um lado há ciências que exigem a visão de conjunto, por outro lado a ciência entregue a si mesma tende ao absoluto e, como a ciência é pelo detalhe, por si mesma ela vai contra a visão de conjunto

-        A metafísica que rejeita a visão de conjunto, não por acaso, vincula-se à concepção individualista do ser humano: toda a tradição liberal é individualista e contrária à visão de conjunto

o   Para os liberais (progressistas ou conservadores; ingleses ou alemães ou estadunidenses ou austríacos), a visão de conjunto equivale sempre à opressão da sociedade sobre o indivíduo

§  O máximo de “sociedade” que os liberais concebem é a justaposição de indivíduos e dos seus respectivos egoísmos

o   O individualismo que descamba no liberalismo é o resultado da secularização da teologia: sai a divindade, mantém-se o egoísmo e rejeita-se a perspectiva social

o   O liberalismo é uma degradação do republicanismo, em particular na perda do sentido coletivo da vida humana

o   Mas é importante indicar que o liberalismo, apesar de seus defeitos intelectuais e morais, concebe ainda uma visão de conjunto em termos de leis válidas para todos (os indivíduos) – a isonomia

o   Da mesma forma, ainda que limitado pelo individualismo, o liberalismo reconhece a importância da ciência

-        O pós-modernismo (com sua conseqüência prática, a política identitária) é uma filosofia especificamente academicista e consiste no desenvolvimento sem freios da metafísica, isto é, do seu espírito corrosivo

o   O pós-modernismo e a política identitária aprofundam os aspectos críticos, isto é, corrosivos da metafísica (da mesma metafísica que resultou no liberalismo e, paradoxalmente, também no marxismo)

o   O pós-modernismo e a política identitária rejeitam (1) a ciência, (2) a visão de conjunto, (3) os valores compartilhados, (4) o universalismo nas políticas públicas

o   De maneira correlata, o pós-modernismo e a política identitária defendem (1) o particularismo, (2) o irracionalismo anticientífico, (3) o exclusivismo e a exclusão de quem não é do grupo identitário, (4) as “narrativas” identitárias exclusivas e excludentes

§  Ao longo da história já tivemos exemplos concretos de tais “narrativas” identitárias: foram a “ciência proletária” de Stálin e a “ciência ariana” de Hitler; atualmente há as “epistemologias negras”, “epistemologias queer”, “epistemologias feministas” etc. etc. etc. – tudo isso devidamente identitário, antiuniversalista, particularista, sectário

§  Duas aplicações práticas do sectarismo pós-moderno-identitário:

·         A defesa de discriminações “positivas”: “racismo inverso” (dos “negros” contra os “brancos”), “sexismo inverso” (das mulheres contra os homens) etc.

o   Uma consequência institucional das discriminações positivas são as cotas de vagas

·         A afirmação do “lugar de fala”, que consiste na defesa, no âmbito da retórica, de cotas exclusivas para os membros dos grupos identitários, de tal maneira que só podem falar sobre esses grupos os membros do próprio grupo, excluindo da possibilidade de falar desses grupos quem não os integrar

o   Versões mais suaves do “lugar de fala” até admitem que não-membros dos grupos identitários possam falar sobre os grupos identitários – mas sempre de maneira subordinada

-        É fundamental ter-se clareza de que não é necessário ser identitário para combater-se o racismo e promover a integração “racial”; para valorizar as mulheres e combater as discriminações e as violências contra elas; para valorizar os homossexuais e combater as discriminações e as violências contra eles etc.

o   A associação (interessada) entre determinadas pautas sociais e políticas e o identitarismo prejudica as próprias pautas

o   É possível e necessário encampar essas pautas sem recorrer ao identitarismo e aos seus profundos vícios morais, intelectuais e políticos

o   Ao reconhecermos a justiça das pautas defendidas pelo identitarismo mas recusarmos seus defeitos morais, intelectuais e políticos, cada uma das políticas identitárias em particular deve ser entendida como um "grito dos excluídos"

-        Insistimos: em contraposição à rejeição intelectual, moral e política da visão de conjunto realizada pelos pós-modernos, é necessário reafirmar a possibilidade e a necessidade das visões de conjunto, ou melhor, das sínteses

o   A visão de conjunto tem aspectos objetivos e subjetivos:

§  Ela é subjetiva na medida em que é o ser humano (o sujeito) quem elabora e a quem se direciona a síntese

§  Ela é objetiva na medida em que se baseia em elementos objetivos, sejam eles cósmicos, sejam eles humanos (históricos e morais)

§  Deixando de lado o escandaloso (mas “charmoso”!) elogio da irracionalidade feito pelos pós-modernos, é questão de perguntarmos com clareza e de respondermos com ainda maior clareza: qual o problema com que a síntese seja subjetiva? Ora, nenhum!

o   O Positivismo, a Religião da Humanidade afirma a visão de conjunto e a síntese:

§  A moralidade e a racionalidade estabelecidas por meio da subordinação progressiva de indivíduos e grupos a coletividades e perspectivas cada vez maiores: família, mátria, Humanidade atual (objetiva), Humanidade histórica (subjetiva)

o   Apenas por meio da visão de conjunto e da síntese propostas pela Religião da Humanidade é possível realizar com êxito a busca da harmonia individual, do bem-estar coletivo, do sentido da vida, da felicidade


29 março 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 3ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da terceira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 22 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Preliminares à Política Positiva III: Estática e Dinâmica; a síntese subjetiva; o estado normal

Sociologia Estática I: teoria da religião: concepções e regulações gerais da existência humana

 

Roteiro

-        Preliminares à Política Positiva III:

o   Estática e Dinâmica

§  São duas perspectivas complementares

·         Diretamente derivadas da concepção de lei natural: relações constantes em termos de coexistência ou de sucessão

·         É a constância na variedade

·         Esboçadas na Biologia, essas duas perspectivas são aplicáveis a todas as ciências

§  Divisão de perspectivas

·         A Estática representa os elementos fundamentais de cada sociedade, presentes em toda sociedade

·         A Dinâmica representa o desenvolvimento encadeado desses elementos ao longo do tempo, com suas inter-relações

§  Elementos da Estática Social: religião, propriedade, família, linguagem, governo (temporal e espiritual); teoria das variações

·         São definidos como os tipos fundamentais para os quais tendem esses elementos no estado normal

§  Elementos da Dinâmica: as três leis dos três estados; lei de classificação das ciências; marcha própria ao Ocidente (fetichismo, teocracia; Grécia, Roma, Idade Média; transição revolucionária; Positivismo)

o   A síntese subjetiva:

§  Visão de conjunto (em termos de natureza humana, de concepções e de objetivos): filosofia, arte, indústria, política, ciência

·         Essa visão de conjunto baseia-se no primado da moral sociológica sobre a existência humana

·         Todos devem entendimentos gerais sobre tudo; em contraposição, a atuação prática é sempre parcial

§  Subordinação da inteligência à afetividade e à atividade prática

·         Relações íntimas entre simpatia, síntese e sinergia

§  Concepções que explicam e regulam o conjunto das realidades humanas e cósmica

§  Afirmação da preponderância normal das ciências superiores (Sociologia e Moral) sobre as ciências inferiores (Matemática até a Biologia), ao mesmo tempo em que “os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros”

·         Isso naturalmente estabelece o que se chama hoje de “multi” e “transdisciplinaridade”

·         O altruísmo e o egoísmo são inatos (ou seja, são naturais); mas: a maior fraqueza do altruísmo e o desenvolvimento histórico da paz, da indústria e da ciência exigem o emprego constante e permanente de todos os recursos sociais e individuais disponíveis para a afirmação do altruísmo

§  Unidade da ciência: estabelecida subjetivamente (isto é, filosoficamente); multiplicidade e autonomia das ciências; homogeneidade de método e de doutrina

§  Estabelece não apenas o que se pode conhecer e fazer, mas, acima de tudo, o que se deve fazer (ou não fazer)

§  Definição da moralidade: estímulo e prática do altruísmo (ternura), compressão do egoísmo (pureza)

o   O “estado normal”

§  O estado normal consiste em uma idealização que considera equilíbrios dinâmicos da natureza humana (individual e coletivamente)

·         Essa idealização é uma prescrição que, por sua vez, baseia-se nas descrições da Sociologia e da Moral por meio da síntese subjetiva

·         Até certo ponto, é aceitável considerar que o estado normal é uma utopia positivista – mas convém notar que Augusto Comte reserva a palavra utopia para uma outra elaboração específica

§  Esses equilíbrios dinâmicos mantêm os três elementos da natureza humana (sentimentos, inteligência e atividade) coordenados

§  Não se trata mais de manter um equilíbrio estático (como nas teocracias iniciais) nem de desenvolver apenas um elemento da natureza humana às expensas dos outros (como na Grécia, em Roma e na Idade Média)

§  O caráter dinâmico desse equilíbrio indica que ele modifica-se continuamente ao longo do tempo e que, portanto, tem que ser restabelecido continuamente

·         A permanência desses equilíbrios é um dos argumentos que justificam a existência e a permanência da Religião da Humanidade, isto é, do novo poder Espiritual adequado a tal situação

§  Na medida em que é um equilíbrio dinâmico e que é uma idealização, aproximamo-nos mais ou menos dele, sem jamais o atingir plenamente

·         Augusto Comte usa a metáfora da reta assintótica: um limite para o qual tendemos continuamente, sem jamais o atingir

·         Considerando a plena positividade, a noção do “estado normal” justifica a máxima segundo a qual “o ser humano torna-se cada vez mais religioso”

§  A palavra “normal”, no âmbito do Positivismo, refere-se portanto ao “estado normal”

-        Estática Social: teoria da religião

o   Observação preliminar: para o Positivismo, “religião” é diferente de “teologia”

o   A religião é o estado de unidade humana individual e social; afetiva, intelectual e prática; por seu turno, a teologia é uma das formas de entender a religião

§  A confusão entre religião e teologia é a mesma que se dá entre os fins (a unidade humana) e os meios (as sínteses teológicas)

§  A idéia de “síntese”, portanto, sugere do ponto de vista intelectual o que a religião propõe para o conjunto da existência humana

§  Como a religião refere-se à unidade do conjunto da existência humana e como essa existência refere-se também, necessariamente, à existência prática, é necessário falar em religião para entender-se a “política positiva” (seja em termos científicos, seja em termos “políticos”)

§  Augusto Comte sugere que a religião é um consenso da alma

§  No início do cap. 1 da Política positiva, Augusto Comte faz uma belíssima retrospectiva histórica das variedades de religião: espontâneas, inspiradas, reveladas, demonstrada: fetichismo, politeísmo, monoteísmo, positivismo

o   A noção de religião regular e une efetivamente as existências individual e coletiva

§  Para o Positivismo, portanto, não faz sentido a oposição absoluta entre sociedade e indivíduo

§  A ligação entre sociedade e indivíduo via religião dá-se por meio das duas funções específicas da religião: regrar e religar (em francês: regler et rallier)

·         A religião regra o indivíduo e religa-o aos demais

·         Para Comte, não por acaso, a etimologia de religião é o latim religare

§  Os vínculos indivíduo-sociedade são variáveis de acordo com a fase histórica considerada

o   A noção de uma realidade externa, objetiva, independente da vontade humana é necessária para o desenvolvimento da religião, em particular no que se refere à parte de regrar (por meio da veneração)

§  A harmonia individual baseia-se sobre uma base dupla: na subordinação do egoísmo ao altruísmo (afetivamente) e na preponderância da realidade exterior (intelectual e praticamente)

o   A ciência suprema é a Moral, mas a base da moralidade positiva é sociológica (e não individual)

§  Uma forma de entendê-lo é por meio da fórmula: “entre o homem e o mundo é necessária a Humanidade”

§  Assim, a noção de Humanidade é o centro da concepção de religião positiva

·         Amor, Ordem, Progresso: aptidão afetiva, natureza intelectual, destinação ativa

25 março 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 3ª sessão

No dia 22 de março ocorreu a terceira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de Estática e Dinâmica; método subjetivo; estado normal; teoria da religião.

Houve alguns problemas na transmissão, que teve que ser interrompida e reiniciada. Apesar dessa dificuldade, reuni as duas partes da exposição em um único vídeo, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8Yjp1UDuoeg.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



15 fevereiro 2021

Raimundo Teixeira Mendes: citações diversas

Apresentamos abaixo diversas citações de Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927, vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana), extraídas de um belo opúsculo publicado em 1899, mas reunindo publicações feitas originalmente em um jornal diário em 1881. Esse opúsculo intitula-se “Calendário positivista – precedido de indicações sumárias sobre a teoria positiva do calendário”.

 As citações escolhidas apresentam de maneira clara como é que o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade reúne em uma síntese poderosa a moralidade e a ciência, a preocupação social e as motivações individuais, o estímulo do altruísmo e a satisfação do egoísmo.

Para facilitar a leitura, inserimos pequenos títulos descritivos antes de cada citação. A grafia foi atualizada.




Mundo e homem, objetivo e subjetivo, cientificidade e moralidade

Seja qual for o problema que solicite a nossa atenção, podemos dispor em duas categorias o conjunto dos dados imprescindíveis à sua completa solução: de um lado, a série de considerações fornecidas pelo mundo; de outro lado, a soma de exigências resultantes dos interesses humanos. É isto que se exprime em linguagem filosófica, dizendo que todo problema tem condições objetivas, – referentes ao mundo, – e condições subjetivas – referentes ao homem. Por exemplo, quando se projeta uma estrada de ferro, não basta examinar as condições do terreno, os lucros pecuniários etc.; cumpre saber sobretudo se a sua realização não importa a ruína da população a cujo cargo estava antes o transporte das mercadorias. E, ao formular a solução, é imprescindível indicar os meios de prevenir semelhante cataclismo, sob pena de ser uma solução incompleta, cientificamente, e iníqua sob o ponto de vista social e moral.

p. 5-6

 

Subjetividade e moralidade da existência humana

É para o homem que o homem trabalha; e para o homem devem convergir todos os esforços humanos; fora deste círculo, tudo é imoralidade e anarquia, seja qual for o pretexto e o título com que o decorem.

Ora, o predomínio do ponto da vista humano significa a satisfação dos interesses coletivos, o bem estar de todos, e não as conveniências de um individuo, de uma cidade ou de uma nação. Toda a concepção da ordem social que não se mostrar compatível com a felicidade de todos os homens, seja qual for a sua condição e o seu grau de civilização, é um sistema imperfeito, incapaz de satisfazer ás inteligências e aos corações bem formados.

p. 6-7

 

Unidade e síntese humanas possíveis apenas com o amor e o altruísmo

Ora, é claro que os órgãos do egoísmo não podem ser escolhidos como devendo dominar para se alcançar que todos os homens tenham o mesmo sentimento; se cada um cuida de si, é forçoso que haja desunião e contenda. Só resta escolher para sentimento dominante o altruísmo, isto é, os órgãos menos intensos, para conseguir que os atos convirjam. Somos assim conduzidos a esta conclusão fatal: a vida social é impossível sem o predomínio do amor, isto é, da dedicação. E será isso possível? Seguramente que sim: – tal foi o resultado de toda a grandiosa elaboração de Augusto Comte. Com efeito, a satisfação dos instintos altruístas não exige o aniquilamento dos instintos egoístas; pelo contrario, a eficácia social dos sentimentos humanos se altera igualmente quando eles se tornam demasiado subtis ou demasiado grosseiros, na frase do nobre Pensador. A expansão altruísta é impossível sem uma certa dose de egoísmo: para amar é preciso viver. Somente, de acordo com uma profunda observação do fervoroso S. Paulo, o destino superior dos órgãos inferiores os enobrece e exalta. O ascetismo é condenado pela Religião da Humanidade, por tornar-nos incapazes de servir a outrem, isto é, de amar; porque melhor ama quem, melhor serve.

Tomemos um exemplo que esclareça o que porventura houver de obscuro nas considerações precedentes. Examinemos um operário em hora de trabalho. A vida social exige dele uma série de operações que constituem o sou ofício, e de cujo produto não tem o menor quinhão: trabalha realmente para outrem. No entanto, ó fácil de ver nele em jogo todos os instintos. O instinto conservador tem a justa satisfação, visto como a vida lhe é assegurada pelo salário, e demais ele tem de velar incessantemente para não ser vítima dos perigos que salteiam a pratica industrial. Os instintos construtor e destruidor funcionam simultaneamente, porque é da natureza da industria separar e reunir materiais. O orgulho encontra uma válvula no domínio da matéria bruta, pelo menos. A vaidade compraz-se na apreciação de seus companheiros. Isto pelo que respeita aos órgãos egoístas; vejamos os altruístas. A veneração se desenvolve na consideração de seus chefes e na lembrança dos grandes inventores. A bondade expande-se no trato dos aprendizes, na recordação dos filhos por quem trabalha, e na contemplação da posteridade, que virá a gozar dos seus labores e sacrifícios. O apego finalmente se exercita no culto de seus companheiros e até de seus instrumentos de oficina. Tome-se qualquer função social, e encontrar-se-ão todos os órgãos cerebrais em jogo.

Este exemplo basta para mostrar como é possível conciliar a satisfação de todos os instintos egoístas, com o imprescindível domínio dos órgãos altruístas; e portanto evidencia a possível solução do grande problema humano. Para assegurá-la basta fazer intervir uma lei biológica, conhecida de todo o mundo, e vem a ser que o exercício desenvolve a função e o órgão, e a falta de exercício os atropina. Não ha quem ignore que o meio de fazer qualquer cousa bem, é exercitar-se em fazê-la sempre que possível for.

p. 8-10

 

Sem o altruísmo e a moralidade não há solução dos problemas enfrentados pelo ser humano

Todo problema, portanto, em que se desprezar o aspecto moral; toda solução que não puder ser considerada como um meio de subordinar o egoísmo ao altruísmo, é um problema não resolvido, é uma solução inútil e até prejudicial. Porque não há meio termo: ou o egoísmo fica subordinado ou subordina.

p. 11

 

Noção positiva de progresso I

Hoje liga-se à palavra progresso a ideia de qualquer mudança no que existe; e por outro lado é geral a crença de que tudo quanto atualmente encontramos na sociedade, pode-se vir a mudar com o correr dos anos. Esta concepção da instabilidade das instituições humanas e de sua variabilidade indefinida constitui a mais seria ameaça à ordem publica, e está em flagrante contradicção com as indicações do método positivo nas ciências inferiores.

p. 12

 

Noção positiva de progresso II

Para ele [Augusto Comte] tudo quanto se tinha passado até então, se dera em virtude de leis naturais; e para descobri-las só havia um caminho a seguir: – ver como se tinham passados os fatos registrados pela história. Feito isto, o conhecimento das leis sociais e morais poderiam dirigir a intervenção humana no governo do homem, assim como as leis matemáticas, físicas e químicas a dirigem na construção de qualquer máquina.

Com estas disposições metódicas, que aprendera no cultivo das ciências conhecidas até si, desde a matemática até a biologia, Augusto Comte empreendeu o descobrimento das leis que regem a sociedade e o homem. Foi então que reconheceu que de fato as sociedades variavam com o tempo, o que já outros haviam também reparado antes dele; mas o que ninguém tinha feito e ele fez foi dizer como é que se opera semelhante variação. Foi assim que ele construiu a sociologia, demonstrando que o progresso consiste sempre:

1.° Sob o aspecto intelectual, em fazer a razão humana passar por três fases: teológica, metafísica e positiva.

2.° Sob o aspecto pratico, em fazer a atividade passar pelas três fases de ataque, defesa, e industria ou paz.

3.° Sob o aspecto moral, em fazer o sentimento passar elas três fases; Família, Pátria e Humanidade.

Em virtude da primeira lei, o homem tende cada vez a tornar-se mais sintético; em virtude da segunda a tornar-se mais sinérgico; em virtude da terceira a tornar-se mais simpático. E tudo isso se resume neste aforismo único: O homem torna-se cada vez mais religioso.

Assim, o positivista crê que a sociedade muda, mas não crê que mude ad libitum do primeiro que chega; o progresso para ele tem uma significação precisa.

p. 13-14

 

Noção positiva de ciência

Vejamos agora a importância que se deve atribuir à ciência, isto é, qual deve ser a posição da inteligência no conjunto da vida humana.

Em primeiro lugar observemos que o ascendente científico não exige que cada homem seja um sábio; se assim fosse, o positivismo não passava de quimera. Existe uma fé científica, como existem uma fé teológica e uma fé metafísica: crê-se por confiança e sem demonstração. Para evidenciá-lo basta reparar que a maioria do Ocidente acredita no movimento da Terra; e no entanto bem pequeno é o numero dos que estão nos casos de formular hoje semelhante teoria. Crê-se porque pessoas que se julgam competentes assim o afirmam.

Isto posto, é fácil de mostrar o caráter anárquico e corruptor da inteligência isolada. Basta reparar que a construção de qualquer máquina de guerra exige em nossos dias talvez maiores esforços intelectuais do que os instrumentos industriais. No ponto de vista objetivo o monitor Solimões é mais apto para revelar a força prodigiosa da ciência moderna do que as faluas que cruzam a nossa baía. Mas decida cada um por si em qual dos casos a inteligência teve melhor destino: se construindo um monstro de destruição numa época que deve aspirar à paz; se construindo um aparelho insignificante consagrado a estreitar as relações sociais.

A ciência isolada é até prejudicial; como todos os aspectos de nossa existência, ela tem de subordinar-se ao amor universal que nos impele a servir à Família, à Pátria, e à Humanidade.

p. 15-16