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23 maio 2016

Carlos Esperança: "O Papa Francisco e a laicidade"

Reproduzo abaixo uma postagem feita no blogue Ponte Europa, por Carlos Esperança, no dia 22  de maio de 2016. O título da postagem é O Papa Francisco e a laicidade; sua reprodução deve-se ao fato de ele ser muito, muito interessante e valer tanto a leitura quanto a reflexão.


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Em entrevista ao diário católico francês, La Croix, de 17 de maio, o Papa Francisco acusou a França «de exagerar a laicidade».

Na mesma entrevista, defendeu que um Estado não deve ser confessional, reconhecendo a laicidade, mas afirmando que «há um conflito radical entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens».

Pese embora o carácter dialogante do atual pontífice, que tem a santidade por profissão e estado civil, revela uma animosidade mal disfarçada, a assimilação genética do poder temporal que confunde com uma sociedade organizada pela lei de Deus, lei que, por ser divina, é irrevogável e alheia ao sufrágio. No fundo, a lei divina é a mais totalitária das leis. Nem o próprio Deus a pode revogar nem os que lhe são sujeitos a podem contestar.

Em primeiro lugar, o Papa disfarçou mal a azia que a laicidade lhe provoca, ao defini-la exagerada, como se a neutralidade pudesse ter graus, como se pudesse haver abstenções violentas e abstenções suaves.

A laicidade nunca foi obtida sem a repressão política do clero das diversas religiões e, sem ela, não há democracias, há teocracias, as formas mais violentas de ditaduras que ficam à mercê dos funcionários de Deus.

É evidente a existência de «conflito entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens». Basta comparar a Arábia Saudita com a França ou o Vaticano com a Itália. Deus, criado por homens e explorado por profissionais da fé, jamais fez prova de vida, mas pretende que o poder dos homens, não o das mulheres, seja vitalício e, se possível, hereditário.

É, alias, para submeter sociedades secularizadas à vontade de Deus que a Jihad islâmica sacrifica jovens assassinos, que são premiados com uma assoalhada no Paraíso e à razão de 72 virgens per capita.

Sem laicidade, voltaríamos à origem divina do poder e às monarquias absolutas. O Papa católico tem o dever de recordar o passado da sua Igreja e, se não quiser ver a sua, basta olhar para as outras que dominam os aparelhos de Estado e se confundem com eles.

A laicidade não consente adjetivos e jamais será excessiva ou escassa, é neutra. Sem ela não é possível que os Estados democráticos respeitem todos os crentes, descrentes e anti crentes, com absoluta indiferença sobre o que cada um pensa em matéria religiosa.

Felizmente, vivemos numa sociedade organizada pela lei dos homens e é fácil imaginar o pesadelo de uma outra «governada pela lei de Deus», de que há sinistros exemplos.

03 setembro 2014

L. A. Becker sobre o clericalismo na UFPR

Ainda a respeito da existência de (1) uma capela (2) explicitamente católica na UFPR, meu amigo L. A. Becker leu os argumentos apresentados pelos defensores do clericalismo. Ele notou alguns vários e sérios problemas na argumentação dos clericalistas; como Becker foi tão claro nos comentários, reproduzi-los-ei ipsis literis abaixo.

O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.

Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
  • o fato de clérigos participarem da fundação de uma universidade pública não cria o "direito" de nela instalar um espaço religioso; se assim fosse, o fato de flamenguistas participarem criaria o direito de nela instalar uma filial da torcida organizada do Flamengo;
  • laicidade não tem nada a ver com culto idólatra à razão - é questão conceitual;
  • também não se trata de atrapalhar o rendimento acadêmico; muito menos fechar a universidade porque tem origem na Igreja; o autor inventa acusações não feitas para atacá-las; é como seu eu dissesse: "é mentira que existe um cavalo de duas cabeças lá em casa!";
  • comparar a capela da UFPR com a Notre Dame é descabido; não só pela desproporção histórica e arquitetônica, mas porque a Notre Dame não está instalada dentro de uma universidade pública;
  • porque o Estado reconheceu o valor histórico da capela não significa que se está proibido de reconhecer que o lugar é inadequado; um erro não justifica o outro;
  • a proteção aos lugares de culto não significa a convalidação de sua instalação em lugares inadequados; caso contrário, instalemos o Templo de Salomão sobre as pistas do aeroporto Afonso Pena e, em seguida, proibamos que seja derrubado;
  • não se trata de apagar os rastros da religião, mas de retirá-la dos espaços laicos; igrejas fora deles, nada contra elas;
  • um espaço de laicidade não é o mais adequado a receber uma capela; assim como uma igreja não é o espaço mais adequado para instalar o gabinete de um prefeito: a Cesar o que é de Cesar.
Acrescento ainda quatro aspectos: 
  • os clericalistas, no artigo mencionado acima, reconhecem implicitamente que a capela universitária da UFPR seria da Igreja Católica, ao referirem-se à Concordata de 2010 para justificarem a obrigação do Estado brasileiro (e, por extensão, da UFPR) de defenderem templos católicos. Em outras palavras, eles levam tão pouco a sério a separação entre igreja e Estado; defendem com tanta naturalidade os privilégios da Igreja Católica, que não entendem (e nem querem entender) que o espaço da UFPR é um espaço do Estado brasileiro e não uma representação eclesiástica no ambiente universitário;
  • a capela foi criada em 1958; todavia, desde 1950 a antiga Universidade do Paraná é uma autarquia federal: em outras palavras, a capela foi, desde o início, construída irregularmente e ofendendo francamente a laicidade do Estado;
  • os clericalistas afirmam que, devido ao fato de a Capela Universitária ser tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico, não se pode mexer nela. Todavia, não é a capela, mas o complexo da Reitoria da UFPR que é tombado; além disso, o tombamento refere-se aos elementos arquitetônicos do prédio, não à decoração interna e ao uso que os prédios fazem de seus espaços internos. Nesse sentido, como argumentamos em nosso artigo inicial, não há absolutamente óbice algum à utilização do espaço para outros fins que não os cultuais, ou, por outro lado, para o uso de outros cultos e ritos;
  • devido ao uso ostentatório do espaço da Capela Universitária pela Igreja Católica, muitos indivíduos têm a impressão de que esse espaço pertence a essa igreja, isto é, de que se trataria de um enclave católico na UFPR. Não: a Capela Universitária é um espaço da Universidade (o que equivale a dizer que é um espaço do Estado brasileiro, ou seja, da República Federativa do Brasil) e sua decoração católica é devida à ação completamente ilegal dos administradores da UFPR, tanto os de 1958 quanto os de 2014.

(A primeira versão desta posta é de 3.9.2014; em 5.9.2014 fiz uma atualização.)

02 setembro 2014

Carlos Eduardo Oliva: "deve-se compreender melhor o Estado laico"

Reproduzo abaixo alguns comentários que meu amigo Carlos Eduardo Oliva fez em 1º.9.2014, a propósito da idéia de "laicidade" defendida por alguns grupos sociais e por alguns políticos. Essas observações foram feitas no facebook, mas seu valor transcende a imediatez dessa rede social.

O original pode ser lido aqui.

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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação

[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente. 

Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!

17 fevereiro 2009

Questionamento necessário

O artigo abaixo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em 17.2.2009. Está disponível no seguinte endereço: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=858582&tit=Questionamento-necessario.

(Infelizmente, o jornal adota o acordo ortográfico, de modo que algumas palavras estão escritas incorretamente.)

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“O pensamento humano é primeiro teológico, em seguida metafísico e por fim positivo” (A. Comte)
A recente campanha deflagrada na Europa pela Associação Humanista Britânica, tendo à frente o biólogo Richard Dawkins, mais que uma provocação, é um convite simpático para as pessoas refletirem a respeito de suas vidas e de seus valores, individuais e coletivos. Essa campanha, que ocorrerá ainda na Espanha, na Itália e talvez na França (mas também no Brasil), dá-se em um momento em que se vê um retorno da teologia – que dura já quase 20 anos – e em que os humanistas, ateus e agnósticos procuram não apenas defender a laicidade e o secularismo, mas também a validade política e filosófica de suas posições e perspectivas.
Há duas ou três questões envolvidas na “polêmica” dos anúncios veiculados nos ônibus: 1) as escolhas individuais sobre crenças e valores; 2) a pseudodiscussão sobre a imoralidade de quem não crê em deus; 3) a importância pública (política) da religião. Apesar de a campanha britânica tratar apenas da primeira questão, as polêmicas que surgiram ao seu redor envolvem as três – sendo, no final das contas, esse o objetivo de Dawkins, dos ateus, dos agnósticos e dos humanistas de modo geral – mas também dos religiosos. Vamos nos ater a duas outras questões, em que a análise sociológica e filosófica é inseparável da afirmação moral.
A primeira refere-se ao avanço da teologia na vida pública e privada, no mundo inteiro e no Ocidente em particular. As marchas concomitantes da laicização e da secularização no Ocidente (mesmo no mundo) foram fatores de progresso social, moral e intelectual, com a atenção dos seres humanos voltando-se para o próprio ser humano e para sua realidade cósmica, social e individual. Isso inclui não apenas (por exemplo) o desenvolvimento da Medicina, das telecomunicações, da Sociologia, da Psicologia, do Welfare State e das preocupações ambientais, mas, acima de tudo, permitiu o desenvolvimento de um ambiente social e político favorável à livre expressão das ideias, mesmo aquelas mais contrárias aos “poderes dominantes”. Em outras palavras, foi o afastamento da religião que permitiu ao ser humano conhecer-se melhor e à sua realidade, além de ter-lhe criado as condições intelectuais e políticas necessárias para manter-se livre e combater crimes e excessos.
Assim, sem rodeios, o retorno da teologia é um retrocesso nessa marcha, com a afirmação de obscurantismos e “vontades” absolutas e arbitrárias como justificativa tanto para regimes sociopolíticos dominadores quanto para decisões individuais e coletivas daninhas para o ser humano e para o planeta Terra. Além de problemas facilmente perceptíveis como os excessos muçulmanos do Talibã ou cristãos de G. W. Bush, há derivações mais sutis: por exemplo, a afirmação do presidente francês Nicolas Sarkozy de que em uma república a crença na transcendência é um pré-requisito: essa é uma forma velada de dizer que um bom cidadão deve ser um fiel, deve acreditar em deus (mas qual deus? Aquele que o Estado defende?).
A segunda questão refere-se à necessidade de moral humana. Diversos pensadores de origem religiosa afirmam que, sem a crença em deus (mas qual deus?), o ser humano é imoral e criminoso. Ora, tal afirmação é um duplo erro: crer em deus não garante a moralidade nem descrer significa imoralidade. Os exemplos novamente são fáceis e variados: a quantidade de criminosos tementes a deus é enorme (na verdade, quase a totalidade deles), assim como a quantidade de humanistas e beneméritos ateus, agnósticos é também enorme – e, em particular, em uma porcentagem muito maior daqueles que creem em deus.
Essas são questões polêmicas, que suscitam fortes paixões. Para tratar delas, é necessário cuidado intelectual, respeito pela posição alheia e compromisso com as liberdades públicas. Respeitadas essas condições, todos temos a ganhar, agora que o debate está aberto.

28 janeiro 2009

"Laicidade positiva"

No ano passado (em 2008) o Presidente francês N. Sarkozy defendeu, em reuniões com o papa Bento XVI, o conceito de "laicidade positiva". No Brasil, como de hábito, não demos muita atenção a isso: afinal de contas, "laicidade", para nós, se tem algum significado, é algo próximo de um xingamento ou algo a evitar-se.

Felizmente os franceses e alguns britânicos não ficaram mudos ao conceito de "laicidade positiva", esquadrinhando os argumentos de Sarkozy e tirando as conseqüências políticas deles.

Em primeiro lugar, se Nicolas Sarkozy - com o apoio do papa - defende uma "laicidade positiva", qual seria a "laicidade negativa"? Seria, evidententemente, a tradicional laicidade francesa, defendida desde o Iluminismo, proclamada por Danton na Revolução Francesa e finalmente transformada em lei em 1905. Ela consiste simplesmente na separação entre Igreja e Estado, em que o Estado não professa nenhuma religião e também não persegue nenhuma: ao contrário do que os sofistas de plantão argumentam, não se trata de um "Estado ateu", mas de um "Estado agnóstico".

Definir o princípio da separação entre a Igreja e o Estado como "negativa" tem um efeito psicológico específico. Não se limita a definir uma laicidade em oposição a outra, mas qualifica uma e outra, de modo que a "negativa" é ruim, fraca, falha. Sarkozy sabe disso e não usou essa expressão por engano.

Se assim é a laicidade negativa, qual o "positivo", qual a vantagem da laicidade positiva de Sarkozy? São várias as vantagens por ele propaladas.

Em primeiro lugar, ela não persegue nenhuma religião (o que já é um sofisma, pois a "outra" laicidade acima de tudo e antes que qualquer outra coisa não o faz).

Além disso, ela permite que os grupos sociais e políticos religiosos exprimam-se qua religiosos e possam influenciar, qua religiosos, a política e o Estado. Diversos críticos da laicidade positiva afirmam que com isso o conceito de universalismo cidadão cai por terra, pois cada grupo poderá defender a sua perspectiva específica contra as demais e assumir uma legislação particularista: o comunitarismo teria como uma de suas conseqüências a criação (ou melhor, a aplicação) de leis ao estilo xaria, como a Inglaterra e o Canadá (talvez não por acaso, dois países que adotam a Common Law, em oposição ao Direito positivo de origem romana) já têm feito.

Uma outra característica da laicidade positiva é que, com ela, pode o chefe de Estado da República Francesa opinar sobre assuntos religiosos e, por extensão, de consciência e de opiniões - em particular, criticando quem não professa nenhuma fé como "monstruosidades morais". Ele faz isso desconsiderando que não cabe ao chefe do governo emitir opiniões sobre as crenças de seus cidadãos, desde que essas crenças não se ponham contra as leis da República... em outras palavras, Sarkozy assume uma posição literalmente retrógrada, que volta no tempo, em que o poder Temporal decide sobre matérias de consciência e dita em que os seus cidadãos podem ou não acreditar. (Penso na Idade Média e também na Idade Moderna dos reis Luíses, mas Sarkozy, que já desprezou publicamente os imigrantes argelinos de Paris, talvez também se lembre da Action Française, do regime de Vichy e do homem forte que, do exterior, apoiava-a...)

Em outras palavras, a "laicidade positiva" é uma mistificação que Nicolas Sarkozy criou para negar, sob todos os aspectos, a laicidade, conforme ela foi elaborada, defendida e institucionalizada na França. Detalhe 1: Sarkozy faz isso sob o olhar atento e aprovador de seu confessor-mor, o papa Bento XVI.
Detalhe 2: ao mesmo tempo em que afirmava esses importantes e desastrosos conceitos políticos, Sarkozy literalmente distraía a atenção pública com seu romance com Carla Bruni.

No Brasil não temos o hábito de refletir sobre o conteúdo dos discursos dos presidentes da República - mesmo porque os nossos presidentes, a começar por Lula, não falam coisa com coisa -, mas é uma questão de tempo até começarmos a sentir as conseqüências do Estado confessional, ops, da "laicidade positiva".

Para os interessados no assunto, informei-me a respeito em diversos blogues - todos eles europeus:

http://www.mezetulle.net/article-25741617.html

http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/feb/13/vivelalaicite
http://politique.hautetfort.com/archive/2008/01/16/laicite-positive.html

http://www.gaucherepublicaine.org/lettres/598.htm#goArticle3

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/09/catherine-kintzler-cest-quoi-la-lacit.html

http://www.revue-republicaine.fr/spip.php?article1564