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07 fevereiro 2023

Anotações sobre o mérito e a meritocracia

No dia 10 de Homero de 169 (7.2.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, lembramos o centenário de nascimento do nosso grande correligionário Paulo de Tarso Monte Serrat (1923-2014), ocorrido justamente nessa data (10 de Homero, ou 7 de fevereiro).

Após a leitura comentada, apresentamos algumas reflexões sobre a noção positiva (altruísta, relativa, sociocrática) de mérito individual. As anotações que fizemos para o sermão estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Meritos) e Positivismo (l1nq.com/Meritocracia). O sermão sobre o mérito pode ser visto nos vídeos a partir de 44' 55".

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Anotações sobre o mérito e a meritocracia

 

-        No Brasil atual, o mérito individual é tema de grande oposição entre distintas perspectivas políticas, a partir de critérios intelectuais e morais

-        Para adiantar o argumento e simplificar a discussão, podemos estabelecer (pelo menos) dois conceitos de “mérito”:

o   Conceito metafísico, burguês e individualista: o mérito individual é dado e medido pelo sucesso material (grosseiramente: pela renda mensal) e este, por sua vez, é uma conseqüência única e exclusiva do esforço individual

§  Essa concepção é, por definição, egoísta e antissocial – e antissocial mesmo no sentido de que o mérito de um indivíduo afirma-se pela negação do valor dos demais cidadãos

o   Conceito positivo, sociocrático e altruísta: o mérito individual é dado e medido pela moralidade das ações individuais, estabelecida, por um lado, pelas contribuições sociais (ou melhor, sociocráticas) dessas ações e, por outro lado, e de maneira complementar, pela moralidade das ações individuais

-        A noção de mérito individual é afirmada desde sempre em todas as sociedades (ou, talvez, na maioria esmagadora delas), como um estímulo à qualidade e ao valor das ações individuais

o   Nesse sentido, o mérito individual é um estímulo ao aperfeiçoamento pessoal

o   Em tais situações, o mérito individual é complementar ao caráter social das pessoas

o   Em suma, a afirmação do mérito individual é a recompensa pública que o conjunto da sociedade dá aos esforços de uma pessoa em benefício dos demais

-        No Ocidente, a noção de mérito individual afirmou-se pelo menos no século XVIII, pelos enciclopedistas, ao mesmo tempo como um estímulo aos esforços altruístas individuais e como um princípio organizador da sociedade que se contrapunha ao princípio das castas

o   É necessário insistir nessa idéia: o mérito individual contrapõe-se às castas (de que as sociedades de ordens, intrínsecas às monarquias, são o último resquício)

o   As sociedades de castas organizam-se de tal maneira que a profissão dos indivíduos e também seus valores pessoais estão determinados previamente ao seu nascimento, pela posição que cada qual ocupa na estrutura social

o   No século XVIII, os enciclopedistas afirmavam que o valor de um indivíduo seria dado não a priori, pelo seu “berço”, mas a posteriori, conforme a moralidade intrínseca e os resultados efetivos das ações realizadas por cada um ao longo de suas vidas

§  Não é preciso insistir muito na idéia de que o último sacramento positivista, o da incorporação, baseia-se intimamente na noção de mérito individual (bem entendido: na acepção sociocrática e altruísta do mérito individual)

-        A noção de mérito individual (em particular como contraposto às castas) é muito clara em outros países, especialmente naqueles com forte tradição republicana

o   Considero aqui, em particular, França e Portugal

§  Vale notar que na França e em Portugal a meritocracia republicana é, por um lado, afirmada pela esquerda e, por outro lado, contra o identitarismo

-        O Positivismo afirma com clareza, com todas as letras, a noção de mérito individual

o   A noção de mérito individual no Positivismo segue a inspiração anti-castas do republicanismo enciclopedista e também o seu estímulo ao aperfeiçoamento individual

o   Embora seja evidente e já o tenhamos afirmado, é necessário repeti-lo com todas as letras: a meritocracia positivista orienta os indivíduos para o altruísmo; ou seja, é u’a meritocracia sociocrática

-        Augusto Comte tinha muitíssima clareza de que a capacidade de ação individual varia de acordo com a posição de cada indivíduo na sociedade

o   Indivíduos melhor situados (os ricos) conseguem fazer mais coisas; indivíduos pior situados (os pobres) conseguem fazer menos coisas

o   A maior possibilidade que os ricos têm de fazer mais coisas resulta pelo menos em duas conseqüências para o Positivismo:

§  Maiores recursos implicam maiores deveres: se o capital é social em sua origem e, portanto, deve ter uma destinação social, a posse (ou, se desejar-se, a propriedade) do capital implica necessariamente a obrigação de usar bem e com fins sociais o capital à em outras palavras, na sociocracia a propriedade do capital não é um luxo nem um direito, mas uma obrigação que se impõe

§  Maiores possibilidades dadas a priori implicam, inversamente, menor mérito relativo

o   Como resultado das observações acima, no Positivismo o caráter moral (e social) do “mérito individual” apresenta-se com toda a clareza e em todo o seu esplendor

o   Ao mesmo tempo, considerando que a capacidade de atuação de um indivíduo está profundamente vinculada à sua posição na estrutura social, a avaliação, ou melhor, a determinação do mérito individual tem que ser extremamente abstrata (sopesando as ações individuais e a posição na estrutura social), elaborada a partir de parâmetros morais (e sociocráticos) e por juízes especialmente preparados para isso (ou seja, pelo sacerdócio positivista)

§  Augusto Comte afirmava que essa avaliação consistia no mais difícil e mais exclusivo atributo do sacerdócio positivo

-        Nas disputas políticas brasileiras, a “direita” neoliberal (ou ultraliberal) afirma o “mérito individual” a partir dos parâmetros estadunidenses dos anos 1980: um indivíduo é meritório se ele tiver “sucesso na vida”, o que, por sua vez, quer dizer que ele agiu contra os outros indivíduos (ou melhor, contra a sociedade) e tem uma altíssima renda mensal

o   O grande exemplo disso é a personagem Gordon Gekko, do filme Wall Street (de 1987 e dirigido por Oliver Stone); interpretado por Michael Douglas; essa personagem dizia que “A ganância é boa”

-        Em contraposição a esse conceito rasteiro e degradante de mérito, a esquerda brasileira afirma... o mais puro igualitarismo, rejeitando totalmente qualquer noção de mérito

o   Insisto: a rejeição esquerdista do mérito consiste na mais completa, pura e total afirmação do igualitarismo; é o igualitarismo levado às últimas conseqüências

o   Ao mirar na concepção neoliberal do mérito, a esquerda rejeita qualquer concepção de mérito e, portanto, na prática despreza as ações individuais e os mecanismos morais e intelectuais adequados à regulação dos “indivíduos”

§  É claro que, ao rejeitar os mecanismos morais de regulação dos “indivíduos”, a esquerda brasileira necessariamente afirma o materialismo economicista (quando não, também, o materialismo politicista)

o   A rejeição da noção de mérito, pela esquerda, apresenta uma série escandalosa de defeitos morais e intelectuais acachapantes:

§  Esquece, ou finge esquecer, que o mérito individual contrapõe-se à sociedade de castas, de tal sorte que rejeitar qualquer mérito individual é afirmar, ou propor, a sociedade de castas

·         Aliás: não por acaso, as tentativas empíricas de criar sociedades “igualitaristas” serviram apenas para criar versões modernas de sociedades de castas, como nos países comunistas

§  Rejeita a tradição republicana ocidental, conforme desenvolvida e aplicada desde o século XVIII e ainda hoje viva e pulsante (França e Portugal)

§  Finge esquecer que a história brasileira foi marcada por uma sociedade de castas, durante o período monarquista

·         A monarquia era um arremedo ridículo de “sociedade de estados” no que se refere à nobreza, mas era muito concretamente uma sociedade de castas no que se referia à escravidão

§  Ignora, ou finge ignorar, que as eleições e os votos baseiam-se sempre no afirmado mérito individual dos candidatos e na superioridade (alegada e/ou real) de uns em relação aos outros

§  Ignora, ou finge ignorar, que situações de profunda injustiça social tendem a realçar o mérito individual daqueles que, a muito custo, conseguem superar suas dificuldades e desenvolver atividades socialmente importantes

·         Por exemplo: a rejeição do mérito individual é incoerente e incompatível com a recente (e corretíssima) valorização de Luiz Gama, em uma cinebiografia de 2021 (Doutor Gama, de Jeferson De)

·         É claro que o realçado mérito individual de quem supera as grandes adversidades não pode ser entendido como justificativa para a manutenção das situações de injustiça social

o   Não há justificativa nenhuma para a rejeição do conceito de mérito da parte da esquerda brasileira

§  A esquerda brasileira combate, com razão e justiça, o conceito metafísico-burguesocrático-neoliberal de mérito que o entende como sendo a alta renda mensal às expensas dos demais

§  Entretanto, a esquerda brasileira, consoante seu igualitarismo materialista radical, despreza toda e qualquer concepção de mérito individual: ela “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”

§  Se quisesse, a esquerda brasileira poderia muito bem elaborar opções intelectuais, campanhas políticas etc. apresentando concepções alternativas de mérito; mas é exatamente essa a questão: a esquerda brasileira não faz tais campanhas porque não quer

o   A rejeição de qualquer concepção de mérito a partir (e/ou em benefício) do radical igualitarismo materialista serve profundamente à política identitária, com seu sectarismo, sua ultrapolitização dos ressentimentos sociais – e suas infinitas cotas

o   Afirmar a “justiça social” para rejeitar o mérito individual não é justificativa nenhuma adequada para as tolices da esquerda brasileira, a esse respeito

§  Essa rejeição – cuja contrapartida é a afirmação do identitarismo e das suas cotas – não serve nem à justiça social nem à regulação dos “indivíduos”, nem faz justiça aos ricos e (em especial) aos pobres que têm efetivamente mérito

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14 novembro 2022

Crítica do individualismo aplicado: do "Enfermeiro da Noite" à Operação Lava-Jato

Na Netflix há dois documentários e um filme sobre o assassino “Enfermeiro da Noite”, que matou dezenas, talvez centenas de pessoas em hospitais dos EUA entre as décadas de 1980 e 2000. Eu assisti a um desses documentários; ele tem alguma coisa como 1h 40, mas poderia muito bem ter a metade dessa duração: é arrastado, excessivamente dramático, muito piegas. Esses defeitos são tão evidentes que o tema do documentário fica totalmente eclipsado. Mas, enfim, após uma investigação de alguns meses e muitas denúncias, o assassino foi pego, confessou, foi julgado e condenado.

A ênfase do documentário – cujo nome não lembro, mas isso não faz diferença para o que me interessa – é nas pessoas, ou melhor, nos indivíduos: o assassino, os assassinados, as famílias, os colegas, os investigadores, os administradores dos hospitais. Há apenas indivíduos, mais ou menos culpados, mais ou menos inocentes.

A ênfase nos indivíduos fica bastante evidente quando, no documentário e nas reflexões finais, comenta-se a responsabilidade dos administradores dos hospitais onde o assassino trabalhou; ao que parece, ele foi seguidamente pego em seus crimes, mas os administradores nada fizeram, ou melhor, acobertaram-no. Há, claro, um elemento de responsabilidade individual aí, mas a questão é que o sistema de saúde dos EUA estabelece uma competição entre os hospitais pelas verbas; se um escândalo desses surge, as verbas cessam e os administradores – que são pessoas com muitas responsabilidades – têm que se preocupar com a manutenção dos serviços, os empregos dos empregados etc. Assim, no sistema prevalecente nos EUA, os administradores vêem-se entre duas exigências contraditórias: acobertar os crimes mas manter os empregos, ou denunciar o(s) criminosos e acabar com todos os empregos e serviços. Os administradores escolhem a permanência das instituições.

Insisto: é um sistema que, em nome do individualismo, em vez de eliminar um dilema inaceitável, estimula a irresponsabilidade criminal, ao obrigar os administradores a escolher, sem mais, entre a responsabilidade social e a responsabilidade criminal.

O documentário, sendo estadunidense, ao mesmo tempo que escolhendo a pieguice, ignora ou despreza um sistema que estimula a irresponsabilidade criminal.

Mas, enfim, isso é problema dos EUA, não brasileiro – pelo menos não é nosso até o ponto em que as instituições dos EUA são apresentadas como modelares e copiadas mundo afora. Como demonstra o exemplo escabroso do racismo institucionalizado dos EUA, com suas cotas racistas, mesmo as instituições mais burras e imorais podem ser (e são) exportadas e copiadas por outros países, entre eles o Brasil.

A última reflexão que esse documentário sugere-me é a respeito da Operação Lava-Java. Indiquei acima que os administradores de hospitais, devido à estrutura do sistema de saúde dos EUA (ou melhor, dos valores sociais, das instituições sociopolíticas e das leis que regem os hospitais de lá), vêem-se obrigados a escolher entre dois tipos de responsabilidades que, lá, são mutuamente excludentes – e, por pior que seja, escolhem manter empregos.

Ao longo da década de 2010, a Operação Lava-Jato – com a militância fanática, ultraprincipista e completamente alheia às consequências sociais de suas ações de seus procuradores da República e seu juiz exclusivo – impôs aos investigados o mesmo tipo de escolha entre opções contraditórias e mutuamente excludentes, com os piores resultados possíveis.

Os operadores da Lava-Jato impuseram aos investigados – muitos deles condenados apenas porque eram suspeitos – duas opções: ou não falavam nada e eram condenados por muito, muito, muito tempo, ou colaboravam e suas penas eram reduzidas. A pegadinha nessa oposição é que as colaborações implicavam – no caso das empreiteiras – que as empresas iriam à falência, gerando interrupção de obras, desemprego e ruína pessoal.

Insisto: durante sua atividade, os operadores da Lava-Jato adotaram uma perspectiva que era ao mesmo principista, individualista e unilateral; eles demonstraram um desprezo olímpico, ou melhor, um desprezo bíblico pelas consequências sociais de suas ações, no que se refere à manutenção das empreiteiras, de suas atividades e dos seus empregos. Apenas a caça à corrupção, ou melhor, apenas a caça aos corruptos importava. Os corruptos muitas vezes foram aqueles que a própria Operação Lava-Jato decidiu que eram corruptos, independentemente de provas; além disso, se haveria consequências em termos de desemprego, para a turma da Lava-Jato isso seria desprezível ou um pequeno e aceitável preço a pagar.

A Lava-Jato, portanto, escolheu impor a falência das empreiteiras; ela escolheu ser individualista e principista; ela escolheu gerar desemprego. O “superjuiz” dissera, lá por 2010, que queria que o sistema político brasileiro ruísse, bem como as empresas que o financiavam deveriam ruir. O procurador-pastor chantageou muitas empresas, ganhando milhares de reais em palestras e viagens (para si e para sua família), em troca de sua “boa vontade” nas investigações. Tanto o “superjuiz” quanto o procurador-pastor foram eleitos em 2022: eles terão emprego pelos próximos quatro a oito anos. Para eles, a imposição do desemprego e da falência das empreiteiras foi um pequeno custo para suas eleições, ops, no seu “combate à corrupção”.

Nos EUA, os administradores de hospitais vêem-se obrigados a fazer escolhas em dilemas impostos por aspectos muito fundamentais de suas sociedades; a recusa dos estadunidenses de tratarem seus problemas em termos sociológicos terá sempre resultados trágicos. No Brasil, a Operação Lava-Jato escolheu, conscientemente, impor a abordagem individualista e mandar às favas a manutenção de empregos: entretanto, se eles fizeram essa desastrosa escolha, não há porque os demais brasileiros referendem e repitam essa decisão.

06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

31 outubro 2020

Mensagem enviada a Federico Finchelstein sobre Augusto Comte

Federico Finchelstein é um historiador argentino, radicado nos EUA, que teve um livro recém-publicado no Brasil, Uma breve história das mentiras fascistas (Belo Horizonte, ed. Vestígio, 2020).

O livro é interessante e corresponde a uma necessidade urgente - conhecer e entender como o fascismo mente, quais são as mentiras que ele difunde, quais são os efeitos sociais e políticos disso.

Exatamente devido a essa importância foi que percebi, com tristeza e alarme uma observação casual, mas profundamente errada e mesmo venenosa, em que o autor em poucas palavras repete mitos e desinformações sobre Augusto Comte. Assim, enviei-lhe a mensagem abaixo; a importância do combate a esses mitos leva-me a publicar a mensagem enviada.

*   *   *

Caro Prof. Federico:

Meu nome é Gustavo Biscaia de Lacerda; sou Doutor em Sociologia Política, Sociólogo da Universidade Federal do Paraná e especialista em história das idéias. Como você é argentino, creio que posso escrever em português sem o receio de não ser entendido.

Como cidadão brasileiro, a política recente de meu país tem sido fonte de grande apreensão desde 2018, sendo muito maior e pior neste ano de 2020, com a pandemia de covid-19, as queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal e vários outros crimes e loucuras cometidos pelo fascista Bolsonaro. Por esses motivos, comprei com grande interesse a edição brasileira de seu livro A Brief History of Fascist Lies, recém-lançado no país.

O seu livro é muito interessante e cumpre um importante papel político neste momento. Uma passagem dele, todavia, chamou-me a atenção, pois está totalmente errada, o que diminui um pouco o brilho de seu livro; a passagem em questão afirma que Augusto Comte (1) seria um autor “antidemocrático” e “anti-individualista” e (2) que desejaria uma “verdade absoluta na política”; além disso, ao relacioná-lo a Joseph de Maistre, você (3) sugere que Comte seria um autor reacionário e, portanto, claramente dá a entender que ele seria um ancestral dos fascistas. (Isso está no cap. 2, p. 43, da edição brasileira.)

No que se refere a Comte, é com tristeza que noto que suas afirmações são equivocadas do início ao fim, não tanto nas expressões empregadas, mas no sentido que você empresta a elas; o problema, portanto, é semântico.

Sobre o “anti-individualismo”: esse mito, que cumpre funções de desinformação, tem origem em uma tradição intelectual radicalmente individualista e anticoletivista, que entende qualquer consideração “social”, radical e necessariamente, como sendo anti-indivíduo. Essa tradição tem origem pelo menos na Inglaterra do século XIX, com ninguém menos que Stuart Mill, e seguiu no século XX com ultraliberais como Hayek e (em uma tradição particularmente estadunidense) Ayn Rand.

Comte era contra o individualismo, mas não contra os indivíduos e as individualidades; em outras palavras, ele era contrário ao egoísmo erigido em norma político-social e em parâmetro de análise sociológica. Ao contrário de tradições sociológicas “holísticas”, em Comte a afirmação da primazia lógica e histórica da sociedade sobre o indivíduo não implica a negação da realidade política e moral do indivíduo; muito ao contrário, essa primazia permite situar social e historicamente cada indivíduo e, ao mesmo tempo, estabelece parâmetros morais para as atividades desses mesmos indivíduos. (Como eu disse antes, aqui se trata de um problema semântico.)

A “antidemocracia” de Comte refere-se ao caráter metafísico da “democracia” e da “soberania popular”, que sempre foram afirmadas como maneiras de negar a soberania divina dos reis, transferindo o capricho arbitrário dos reis para o capricho arbitrário dos “povos” (que, por sua vez, são representados pelos “líderes”). Na crítica filosófico-política que Comte faz à democracia não há nada que se refira às liberdades individuais, às liberdades de pensamento e de expressão, às garantias constitucionais de proteção aos indivíduos etc. Evidentemente, para Comte a democracia não é o regime das liberdades; em vez de falar em “democracia”, ele fala em “República”. (Como eu observei antes, trata-se aqui, mais uma vez, de um problema semântico.)

No que se refere ao desejo de uma “verdade absoluta na política”, eu fico sem saber de onde ela pode ser surgido. Comte era um autor que desde o início de sua carreira afirmava, com todas as letras, que “o único absoluto é que só existe o relativo”; a negação do absolutismo filosófico e a afirmação do relativismo foi uma das maiores constantes da carreira de Comte, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passava. A referida rejeição da “democracia”, por exemplo, baseava-se exatamente nisso: tanto a “soberania divina dos reis” quanto a “soberania dos povos” eram absolutas - e, por isso mesmo, arbitrárias, caprichosas e sem o menor controle racional e/ou social -, devendo ser substituídas pelo relativismo do regime republicano, com liberdades públicas dirigidas ao bem comum. Aliás, enquanto no caso do “anti-invididualismo” e do “antidemocratismo” de Comte o problema é de manipulação semântica, no caso de uma “política absoluta” o problema é de outra ordem: trata-se da projeção aos inimigos dos defeitos próprios, isto é, os inimigos de Comte projetam nele os seus próprios desejos de uma “política absoluta”... é triste perceber que esse procedimento seja inadvertidamente adotado em um livro que combate as manipulações fascistas.

Por fim, a aproximação de Comte a De Maistre é um procedimento velho, que escamoteia totalmente a igual proximidade de Comte com Diderot, Condorcet, com os republicanos franceses de 1848, com sua oposição a Napoleão III etc.

Se tiver tempo e interesse, há vários livros que tratam dessas questões em profundidade. Há um antigo, de Jean Lacroix, La Sociologie d’Auguste Comte, assim como um mais recente, de Laurent Fedi, Comte.

Eu mesmo tenho inúmeros livros sobre essas questões, como pode ver aqui; também é possível ler a versão original da minha tese de doutorado (PhD thesis) aqui.

Saúde e Fraternidade,

Dr. Gustavo Biscaia de Lacerda.

07 maio 2020

Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral


Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado: essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.

Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas de investimento, dos especuladores financeiros.

Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma, podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional, isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados, professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os "youtubers", os "influenciadores" também entram nessa categoria.

Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.

Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.

Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem, seria estranho.

Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população, seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do pagamento de impostos.

Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras "modernidade" e "progresso".

(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra "fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)

Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e Progresso".

Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o "marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os servidores públicos é que seriam parasitários.)

Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à "burguesia" no final não passa de indignação política para adolescentes rebeldes.

Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha, é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro. Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus comportamentos.

O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo "Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez mais ricos.

(Não é por outro motivo que os representantes histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo, tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)

Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira - os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação - fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.

O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante no Ministro da Saúde!

É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo; com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos" (isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e - isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!

Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá algum país para que essa burguesia possa agir?  Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.

11 março 2016

Sociologização do indivíduo ou reducionismo da sociedade?

 

Nas Ciências Sociais – e, possivelmente, também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1]. O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações, idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos; assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.

Essas concepções, conforme as entendo, são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações. Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações, elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos teóricos”.

Tais situações apresentam-se com clareza quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas, sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões. Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual interpretação dos resultados.

Ora, é necessário termos clareza de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características e traços – consiste em um excesso de empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”) com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”): por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais, intelectuais e práticos.

Por outro lado, a dificuldade em realizar a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas “indivíduos”, mas coletividades em ação – essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no fundo ele consiste no principal) “obstáculos epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição da Sociologia[3].

Assim, temos que ter clareza de que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos ao longo do tempo[4].

Em suma: o erro que origina a dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].

O caráter de “obstáculo epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7], evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em meados do século XIX:

[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que perante o antigo [a divindade cristã]. [...]

A citação seguinte é ainda mais clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no original): “Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.

Uma última observação para concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos, de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências teóricas e metodológicas que isso acarreta.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. 1996. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto.

BECKER, Howard S. 2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar.

BORGES, Camila D. & SANTOS, Manoel A. 2005. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.

BOTELHO, André. 2013. Essencial Sociologia. São Paulo: Companhia das Letras.

CASTRO, Celso. 2014. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar.

COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

FREITAS, Renan S. 2003. Sociologia do Conhecimento. Pragmatismo e pensamento evolutivo. Bauru: USC.

GONDIM, Sônia M. G. 2003. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161.

KING, Gary; KEOHANE, Robert O. & VERBA, Sidney. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. New Jersey: Princeton University.

Lacerda, Gustavo B. 2022. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. In: _____. Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.

SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.

SILVA, Tomaz T. 1990. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.

WRIGHT MILLS, Charles. 1972. A imaginação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.



[1] Esta postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024 ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação substancial.

[2] Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016, considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos (2005)).

[3] A idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é perfeitamente aplicável à Sociologia.

[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico, no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência). Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito, com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista, cf. Lacerda (2022).

Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma sugestão de H. Becker (2007).

[5] Tomaz Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.

[6] A chamada “Sociologia weberiana” padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor: na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã (romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)! Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna” (!) Sociologia.

Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão “imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação individual da situação de cada indivíduo na sociedade (Wright Mills, 1972).

Por fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras (Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas, propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se percebe, válidas para todas as Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social exaltada nas coletâneas acima indicadas.

[7] O caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal. Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um aspecto teórico. No caso que nos interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e acima de tudo, descreve a realidade – no caso, a realidade própria ao ser humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes conseqüências morais e políticas.

[8] Um esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso do Soneto de fidelidade, a expressão “posto que” tem um sentido adversativo e significa “embora”, ao contrário do entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.

[9] Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um “obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria, o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p. 192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo, sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais, primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras, vincula-se precisamente às viagens como procedimento metodológico.