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11 abril 2024

Monitor Mercantil: "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado"

O jornal Monitor Mercantil, do Rio de Janeiro, publicou um artigo de minha autoria intitulado "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado". 

O texto pode ser lido diretamente na página do jornal, aqui: https://monitormercantil.com.br/deltan-dallagnol-sobre-elon-musk-e-laicidade-do-estado/.

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Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Em 7 de abril de 2024, o ex-procurador da República e ex-Deputado Federal Deltan Dallagnol palestrou no Massachussets Institute of Technology (MIT) (“Deltan dá razão a Musk em briga com STF e é vaiado nos EUA ao defender religião na política”, Folha S. Paulo, 7.4.2024). Os seus comentários suscitam muitas reflexões, que ultrapassam disputas episódicas e referem-se a elementos importantes da política nacional contemporânea.

Inicialmente, Dallagnol defendeu as críticas que o empresário Elon Musk fez contra Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sugerindo que o Ministro seria a favor da censura, que deveria sofrer impedimento e que ele, Musk, não respeitará as decisões da Justiça brasileira. Depois Dallagnol defendeu o emprego explícito de critérios teológicos na política e que a rejeição desses critérios seria um “preconceito secularizante” de origem “humanista”.

Deltan Dallagnol ficou famoso a partir de 2014, à frente da Operação Lava Jato. Ele e sua equipe evidenciaram que, muito além de buscarem identificar e processar judicialmente práticas de corrupção em empresas públicas, eram movidos por um desejo de fazer política (pública) atrás e por meio de instituições do Estado, ao mesmo tempo em que buscavam executar um anunciado plano de destruir as instituições públicas, vistas como corruptas em sua generalidade (com exceção dessa equipe iluminada). As investigações geraram merecido amplo apoio público; mas esse apoio era mantido com a “espetacularização” das investigações, realizadas com um agressivo espírito ultradraconiano e um objetivo de destruir (em um apocalipse?) as instituições públicas. Nisso, Dallagnol ocupou papel de destaque, embora não fosse o único líder, nem, talvez, o cérebro jurídico da equipe do fim do mundo. Ele também sempre deixou claros os seus valores político-teológicos evangélicos: na verdade, é possível conjecturar que suas crenças teológicas inspiram uma concepção teocrática que fundamenta sua orientação apocalíptica e ultradraconiana da política. 

Assim, o apoio de Dallagnol a Elon Musk é curioso, ou melhor, contraditório. Elon Musk é um bilionário sul-africano favorável a favor de golpes de Estado quando seus interesses comerciais são contrariados; é contra a regulação pública das Big Techs a respeito de discursos de ódio (ele é dono do Twitter); ele é contra os direitos trabalhistas; ele já se manifestou a favor de perspectivas políticas reacionárias; agora ele manifesta-se contra as legítimas instituições públicas brasileiras. Deveria ser evidente que se impõe ao ex-procurador da República Dallagnol manifestar-se pelo repúdio às declarações de Musk. O ex-Deputado Federal não atua como um defensor das leis, mas como integrante do establishment, em busca de apoio público e de votos – e também do apoio daqueles mesmos grupos e indivíduos que, quando liderava a equipe do fim do mundo, ele supostamente combatia. 

Passemos à defesa da teologia na política. Para Dallagnol, existiria um “preconceito” secularizante e “humanista” contra a afirmação política de valores teológicos; enquanto outras filosofias políticas teriam legitimidade para exprimir-se publicamente, a “religião” não a teria. Essas afirmações são todas altamente problemáticas. 

Comecemos pelo erro de confundir “religião” com teologia. A religião é a sistematização do conjunto da vida humana, para a harmonia coletiva e individual, a partir de alguma filosofia. Dessa forma, a religião é um conceito amplo, de que a teologia é apenas um tipo específico. O erro de Dallagnol é ainda maior porque ele compartilha o preconceito segundo o qual a “religião” (a teologia) é apenas o monoteísmo, em particular o monoteísmo cristão, e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante – e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante evangélico e de origem estadunidense. Mas se religião é sistematização da vida humana a partir de alguma filosofia, é correto considerar que há outras religiões (além da dos evangélicos dos EUA), incluindo os humanismos que Deltan Dallagnol critica. Assim, o que se nota em Dallagnol é uma visão de mundo estreita e particularista. 

Como ex-procurador da República, Dallagnol deveria conhecer o livro MinistérioPúblico: em defesa do Estado laico, publicado em 2014 pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Nesse livro – de que participo com um capítulo – há textos históricos e filosóficos; Dallagnol deveria conhecer as reflexões presentes nele; ainda assim, vale expô-las aqui. 

No século XVI ocorreu o cisma protestante e surgiu um problema muito maior que uma disputa filosófica: havia um problema político. Considerava-se então que todo Estado deveria ter uma religião oficial para a ordem pública; essa religião seria a do governante (é a frase francesa: une foi, une loi, un roi – “uma fé, uma lei, um rei”). A disseminação do protestantismo e a reação católica converteram-se em guerras generalizadas e que duraram cerca de 150 anos (as “guerras religiosas”). Essas guerras só acabaram quando, ao término da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), decidiu-se que a política internacional deveria basear-se em bases apenas políticas, deixando-se de lado os aspectos teológicos e com o respeito à autonomia de cada país. Não é que a religião tenha deixado de ser levada em consideração; mas os vários países tiveram que reconhecer que as disputas teológicas causavam danos políticos demais. Daí os países da Europa ocidental foram obrigados a instituir em diversos graus a tolerância religiosa, ou melhor, as liberdades de consciência, de expressão e de associação, resultando na separação entre o âmbito religioso e a vida política. Exatamente porque a manifestação pública das crenças teológicas conduziu às guerras que os países europeus decidiram que seria melhor que a “religião” deveria ser um assunto cada vez mais estritamente particular. Não se trata de “preconceito” contra a teologia, mas de um acordo tácito que buscou realizar a paz e evitar os conflitos: grosso modo, é a “laicidade do Estado”. 

Os seres humanos discordam pelos mais variados motivos, mas alguns motivos geram mais disputas que outros. O que pode ser discutido com liberdade e clareza produz menos conflito que aquilo que só pode ser aceito sem discussão, pela pura “fé”: as crenças absolutas (teológicas) são do último tipo. É claro que qualquer teológico pode discutir com liberdade suas crenças, mas a lógica interna das crenças teológicas rejeita essa liberdade – e essa lógica interna impõe-se aos indivíduos e tem efeitos concretos. Os crentes pessoalmente podem estimular a tolerância e a liberdade, mas por si mesmas as crenças rejeitam a discussão: quem não crê é um “infiel”, quem discorda é “herético”, “ateu”, “servo do demônio”. Assim, não foi por acaso que ocorreram as guerras religiosas: o absolutismo das crenças teológicos estimula a falta de tolerância, a imposição de crenças, a ausência de compromissos. Por outro lado, foi justamente a secularização da política (após e devido à Guerra dos 30 Anos) que passou a estimular a paz e a evitar os conflitos. A tendência secularizante da política, então, não é um preconceito contra a teologia; essa tendência é uma conseqüência da busca da paz e da rejeição da guerra. 

Retornemos a Dallagnol. Ao apoiar Musk, Dallagnol episodicamente referenda concepções e práticas que devemos chamar de golpistas. Isso por si só é muito preocupante. Por outro lado, em termos de mais longo prazo e mais profundos, é assustadora a idéia de que haveria um preconceito secularizante e humanista contra teologias políticas. Essa concepção, embora denuncie um suposto preconceito, é ela mesma preconceituosa e revela ignorância histórica, filosófica e política. Não sendo o ideal, é até aceitável que o comum dos cidadãos (e dos teológicos) não tenha conhecimentos históricos e filosóficos; mas o mesmo já não pode ser dito dos líderes políticos e espirituais, especialmente se eles são ex-procuradores da República.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política.


15 dezembro 2021

Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República. 

Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.

Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.

O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).


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Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.

Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.

O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.

Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.

Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.

Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).

Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.

A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.

Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.

Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.

Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.

A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.

Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.

Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.

  

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

11 julho 2019

Agência Brasil: "Bolsonaro diz que indicará evangélico para STF"

O atual Presidente da República, como é amplamente sabido, é uma pessoa reacionária, grosseira, mesquinha e vingativa; entre as inúmeras demonstrações de sua incivilidade e de seu anti-republicanismo, podemos lembrar que nunca escondeu sua defesa da tortura como "política social".

Dito isso, a declaração indicada na matéria abaixo, em que o Presidente da República reitera uma observação feita diversas vezes antes, indica o quanto ele não entende (e não quer entender) os princípios da República e em particular o da laicidade, a despeito de ele presidir essa mesma República.

A República é laica e essa laicidade é a condição de todas as liberdades de que gozamos e de que queremos gozar. Não importa se um brasileiro em particular é candoblecista, satanista, católico, evangélico, ateu, muçulmano, agnóstico ou positivista: a laicidade há que ser preservada como um valor fundamental.

Além de cometer esse erro - esse crime, na verdade -, o Presidente da República evidencia que não entende (e não quer entender) que a obrigação fundamental dos ministros do Supremo Tribunal Federal é respeitar e aplicar a Constituição da República Federativa do Brasil atualmente em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988. A filiação religiosa dos ministros é completamente secundária nesse sentido; o respeito à Constituição obriga os ministros, como magistrados da República, a pôr em segundo plano suas convicções religiosas em benefício da Constituição caso haja conflito entre ambas.

(Apesar disso, é importante notar que tanto o Presidente da República quanto muitos dos seus mais fervorosos apoiadores evangélicos primam por desrespeitar essa regra elementar da cidadania republicana, isto é, da cidadania.)

A notícia abaixo foi originalmente publicada pela Agência Brasil em 10.7.2019 aqui; não reproduzi toda a notícia porque há trechos, especialmente no final, que não dizem respeito ao tema da laicidade.

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Bolsonaro diz que indicará evangélico para Supremo Tribunal Federal

Presidente participou de culto na Câmara dos Deputados


Publicado em 10/07/2019 - 10:32
Por Andreia Verdélio – Repórter da Agência Brasil  Brasília


O presidente Jair Bolsonaro afirmou que indicará um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF), pois, para ele, a busca pelo “resgate dos valores familiares” deve estar presente em todos os poderes do país. “Entre as duas vagas que terei para indicar para o Supremo um deles será terrivelmente evangélico”, disse, durante sua participação em um culto da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, na manhã de hoje (10).
No mês passado, ao criticar a decisão do STF de criminalizar a homofobia como forma de racismo, Bolsonaro já havia sugerido a indicação de um evangélico para a Corte. Até 2022, o presidente da República poderá indicar nomes para pelo menos duas vagas, que serão aberta com a aposentadoria compulsória dos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.
Hoje, Bolsonaro elogiou a atuação dos parlamentares evangélicos nos últimos anos. “Vocês sabem o quanto a família sofreu nos últimos governos. Vocês foram decisivos na busca da inflexão do resgate dos valores familiares”, disse. “Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. O Estado é laico mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos”, disse, em referência à declaração da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
[...]

09 outubro 2017

Gazeta do Povo: "Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada"

A Gazeta do Povo publicou no dia 8 de outubro um artigo de minha autoria sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Em minha opinião, essa decisão é catastrófica - aliás, daí a clareza com que exponho idéias que, geralmente e de outra maneira, apresentaria de maneira mais branda.

Felizmente, como a Gazeta do Povo tornou-se um jornal principalmente eletrônico, agora é possível escrever textos um pouco mais longos, em que se pode expor com um pouco mais de calma os argumentos e as questões de interesse.

O original encontra-se disponível aqui.

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Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada

O ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas

Gustavo Biscaia de Lacerda  
[08/10/2017]  [10h00]

A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).

Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional: no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010, essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.

Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?

A base para essa polêmica está na Constituição Federal de 1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de “Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da República (artigo 13).

E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.

Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas, como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.

Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião) serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas, organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos, como ocorre no Rio de Janeiro.

Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola, pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é (nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos os dias nos meios de comunicação.

Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião. Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.

Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial, de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado” de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento, casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar; mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.

O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país

 Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”. Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual intervenção militar na República.

Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública” consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais, universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o “governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”, na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder, para imporem seus valores.

Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do “governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de 1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.

Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores possíveis: é um completo desastre que se anuncia.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

17 junho 2015

Resumos das exposições sobre a audiência sobre ensino religioso confessional

Indico abaixo várias matérias produzidas pela assessoria de comunicação do Supremo Tribunal Federal ao longo do dia 15.6.2015 a respeito da audiência sobre ensino religioso obrigatório confessional.

Como são muitas matérias, não as reproduzirei integralmente; apenas indicarei os títulos e os vínculos.

Alguns comentários gerais.

Evidentemente, os grupos humanistas acadêmicos e da sociedade civil puseram-se contrários tanto ao ensino religioso obrigatório quanto ao ensino confessional. Entram nessa categoria cinco ou seis expositores, o que revela uma concordância generalizada contra o clericalismo pedagógico.

É digno de nota que também judeus, batistas e espíritas são completamente contrários ao ensino religioso obrigatório e, ainda, ao confessional.

Os representantes dos chamados cultos afrobrasileiros e da ioga foram ambivalentes, ao proporem que o ensino religioso contemple todas as religiões. O representante do budismo, segundo a matéria, foi genérico e não expôs de verdade nenhuma posição a respeito do tema em pauta.

Os representantes das Assembléias de Deus não tiveram unidade de idéias: dois foram fortemente contrários ao ensino confessional e outro foi favorável.

Os católicos, os muçulmanos, a Igreja Universal e - pasme-se! - a Câmara dos Deputados (!!!) são a favor do ensino religioso obrigatório e confessional. A "Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família" - nome pomposo que aglutina os teológicos monoteístas no Congresso Nacional - também defendeu o clericalismo. O Conselho Nacional de Secretários de Educação foi ambíguo a respeito, tendendo a ser favorável ao clericalismo pedagógico.

Não se entende porque houve dois representantes católicos (CNBB e Arquidiocese do Rio de Janeiro), três representantes das Assembléias de Deus (Igreja de Belém e Convenção Nacional), dois representantes judeus (Juristas Brasil-Israel e Confederação Israelita), além de vários grupos jurídicos.

Inversamente, a Igreja Positivista do Brasil e a Igreja Positivista de Porto Alegre - que pleitearam representação na audiência e que desde sempre são algumas das mais importantes defensoras da laicidade do Estado - tiveram negadas suas representações.

Por fim, deve-se notar que, contrariamente ao que afirmou o representante batista, a proclamação da República em 1889 acarretou imediatamente a laicização do Estado e a inexistência de ensino religioso público, obrigatório ou não, confessional ou não. Essa disciplina só passou a existir após 1930, devido à pressão da Igreja Católica, na pessoa do cardeal Sebastião Leme, que conduzia desde 1916 o movimento da "neocristandade". 

Além disso, foi devido à pressão da Igreja Católica e dos evangélicos na Constituinte de 1987-1988 e da ação de Ulisses Guimarães, que há a referência ao "deus" no "Preâmbulo" da Constituição e a previsão constitucional de ensino obrigatório de uma única disciplina, que é a de "religião".

Abaixo, as matérias do STJ:

Ministro Roberto Barroso abre audiência pública sobre ensino religioso nas escolas públicas

Expositores iniciam apresentações na audiência pública sobre ensino religioso

Ensino religioso: no período da manhã, 14 entidades se pronunciam na audiência pública

Audiência pública sobre ensino religioso prossegue à tarde com 17 expositores

Mais especialistas expõem seus argumentos na audiência pública sobre ensino religioso

Expositores concluem apresentações na audiência pública sobre ensino religioso

Ministro Barroso encerra audiência pública e destaca enriquecimento intelectual proporcionado pela discussão

É possível assistir às exposições aqui: https://www.youtube.com/user/STF.

Resultados da audiência sobre ensino religioso

Reproduzo abaixo matéria publicada pela revista eletrônica Consultor Jurídico, sobre a audiência pública realizada em 15.6.2015 pelo Ministro Luís Roberto Barroso, sobre a constitucionalidade do ensino religioso público obrigatório confessional. O original pode ser lido aqui.

De qualquer maneira, devo admitir que fico muito, muito, muito satisfeito com a referência que o "consultor jurídico" da Câmara dos Deputados fez ao positivismo comtiano (em destaque meu, no final do texto). Na verdade, é uma honra, é um grande elogio e um grande reconhecimento afirmarem que o Positivismo é pela laicidade do Estado - mesmo que o "consultor jurídico" tenha feito a referência em tom acusatório.

Tenho apenas duas dúvidas:

(1) Por que é que um "consultor jurídico" da Câmara dos Deputados manifestou-se contra o ensino laico? O ensino confessional - ou seja, a imposição carola de uma crença para-oficial - é a posição oficial da Câmara?

(2) Quando foi que o Positivismo tentou ir contra a Constituição para "banir o ensino religioso"? Gostaria muito que ele mostrasse de onde tirou essa bobagem; é uma observação sofística, do tipo "é verdade que você não bate na sua esposa?", em que se nega apenas para afirmar sub-repticiamente.

O Positivismo sempre foi muito claro que isso não é matéria constitucional; na verdade, a Constituição de 1988 obriga as redes de ensino a terem uma única disciplina, que é religião (nem português, nem matemática são obrigatórios segundo a Constituição!): isso, evidentemente, é o resultado da pressão dos grupos de pressão católicos e evangélicos.

*   *   *

AUDIÊNCIA PÚBLICA

Barroso promete liberar ação do ensino religioso no segundo semestre

O ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a ação direta de inconstitucionalidade que questiona a legalidade do ensino religioso nas escolas da rede pública deverá ser julgada já no segundo semestre deste ano.
Ele promoveu uma audiência pública sobre o tema nessa segunda-feira (15/6), em Brasília. Após ouvir posicionamentos de diversas entidades favoráveis e contrárias à inclusão dessa disciplina na grade curricular das instituições de ensino, ele afirmou estar mais apto para julgar. “Pessoalmente saio daqui muito mais capaz de equacionar as questões tratadas no processo do que antes da audiência”, afirmou.
Audiência convocada por Barroso confrontou correntes que defendem ensino religioso laico e confessional.
Fellipe Sampaio/SCO/STF
O ministro esclareceu que o questionamento feito na ADI restringe-se às escolas públicas. Portanto o julgamento não vai interferência nas instituições privadas, que poderão continuar ministrando livremente o ensino religioso confessional a quem se interessar. De acordo com o ministro, a audiência pública foi importante em razão dos valores constitucionais tratados na ação: a liberdade religiosa, o Estado laico e a previsão constitucional expressa de que haja ensino religioso nas escolas públicas.
A ADI em curso no STF foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República, que defende que o ensino religioso seja ministrado de forma laica, sob um contexto histórico e abordando a perspectiva das várias religiões. A ação visa a conferir interpretação conforme a Constituição Federal a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e ao acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (Decreto 7.107/2010).
Participaram da audiência 31 entidades. Uma delas foi o Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação. O representante Luiz Roberto Alves destacou que o artigo 33, da Lei de Diretrizes Básicas da Educação (Lei nº 9.394/96), estabelece que o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão. Por isso, deve ser ministrado de forma laica. “Deve ser um estudo aberto, criativo e autônomo do fenômeno cultural da religião ou das formas de religiosidades, portanto plenamente ligado ao ético, estético, linguístico e ao científico”, afirmou.
Para Gilbraz Aragão, representante do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o ensino religioso, em um estado laico como o Brasil, se justifica “pela necessidade de formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de avaliarem as notícias religiosas em seu contexto, sem imposição de doutrinas e, portanto, de natureza não confessional”.
Já Wilhelm Wachholz, representante da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião, defendeu proposições que busquem consolidar o ensino religioso não confessional como direito do cidadão em favor da promoção da liberdade religiosa e de uma sociedade democrática e ética.
Na avaliação do advogado Gilberto Antonio Viana Garcia, do Instituto dos Advogados Brasileiros, o Brasil não pode financiar o ensino de qualquer confissão religiosa em específico, e deve inevitavelmente adotar o modelo não confessional. De acordo com ele, é um dever do Estado resguardar e proteger todas confissões religiosas.
Divergências
Na opinião do membro da Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel, Carlos Roberto Schlesinger, o ensino religioso não deveria existir em forma alguma; mas se existir, a única forma de se compatibilizar o caráter laico do Estado é a adoção do modelo não confessional. Ele disse acreditar que o apropriado ao país seria a adoção do ensino da história das religiões de forma a se ensinar o respeito à crença e à cultura do outro. 
O integrante da frente parlamentar que reúne 268 deputados federais e senadores, deputado Pastor Eurico (PSB/PE), manifestou-se favoravelmente ao ensino religioso, por “levar as pessoas a aprender mais sobre valores e relacionamentos interpessoais”.
Já o diplomata Luiz Felipe de Seixas Corrêa defendeu, em nome da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que o ensino religioso seja confessional. “Interpretar o ensino religioso como o da história das religiões não é compatível nem com a letra nem com o espírito da lei”, afirmou.
O consultor da Câmara dos Deputados Manoel Morais, por sua vez, criticou as posições “laicizantes”, que teriam viés ideológico, em contraposição aos movimentos pela laicidade. “O movimento laicizante é uma roupagem nova do positivismo comtiano, que tenta banir o ensino religioso das escolas públicas, à revelia da Constituição”, afirmou.
Já o professor de Direito Constitucional Daniel Sarmento, da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, ao manifestar-se pelo ensino religioso não confessional, afirmou que existem cerca de 30 milhões de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas que, quando a disciplina é ministrada por religiosos, estão expostas a visões dogmáticas e excludentes.
De acordo com ele, a mera possibilidade de o aluno se ausentar das aulas não é suficiente para garantir a liberdade de crença, em razão das pressões psicológicas, às quais crianças e adolescentes, como seres em formação, estão sujeitos.  Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
ADI 4.439
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2015, 18h38

15 junho 2015

Luís Roberto Barroso: "Estado deve abster-se de promover religiões"

Reproduzo abaixo artigo publicado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que organizou para o dia 15.6.2015 uma audiência pública sobre a constitucionalidade do ensino religioso público e obrigatório.

Evidentemente, tanto a audiência quanto a ação de inconstitucionalidade que a originou têm relação intensa e direta com a laicidade do Estado, com as liberdades públicas do país e também com a Concordata celebrada em 2008 entre o Brasil e o Vaticano (pela qual, aliás, Luís Inácio Lula da Silva deveria ser processado por crime de lesa-pátria). 

O texto foi publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo do dia 14.6.2015 e reproduzido no portal Consultor Jurídico.

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http://www.conjur.com.br/2015-jun-14/roberto-barroso-estado-abster-promover-qualquer-religiao

ENSINO RELIGIOSO
Estado deve se abster de promover ou dificultar o exercício de qualquer religião

14 de junho de 2015, 10h48
Por Luís Roberto Barroso

*Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo deste domingo (14/6)

Sou filho de mãe judia e pai católico. Cresci indo a sinagogas e igrejas. Aos 15 anos, fiz um intercâmbio no exterior e vivi com uma adorável família presbiteriana. Ao fazer meu mestrado na Universidade Yale, nos Estados Unidos, meu vizinho de porta e amigo era muçulmano, da Arábia Saudita.

Desde cedo aprendi a conviver com a diversidade e a apreciá-la. Ao longo do tempo, reforcei a minha convicção de que as pessoas são essencialmente iguais. Não consigo imaginar nada mais triste para o espírito do que uma pessoa se achar melhor do que a outra, seja por sua crença, cor, sexo, origem ou por qualquer outro motivo.

No Supremo Tribunal Federal, sou relator de uma ação direta de inconstitucionalidade na qual se discute o papel do ensino da religião nas escolas públicas. Há basicamente duas posições em debate.

De um lado, há os que defendem que o ensino religioso possa ser ligado a uma religião específica, sendo ministrado, por exemplo, por um padre, um pastor ou um rabino. É o que se chama de ensino religioso confessional.

De outro, há os que sustentam que o Estado é laico e que o ensino de religião tem de ser de caráter histórico e plural, com a apresentação de todas as principais doutrinas. Isto é: não pode ser ligado a um credo específico.

São diferentes formas de ver o papel da educação religiosa. Ao Supremo Tribunal Federal caberá determinar qual dessas duas posições realiza mais adequadamente a vontade constitucional.

A Constituição não tem uma norma expressa a respeito, mas prevê a existência de ensino religioso facultativo, assim como prevê que o Estado é laico e que não deve apoiar ou embaraçar qualquer culto.

Convoquei para esta segunda-feira (15/6), no Supremo, uma audiência pública para debater o tema e convidei representantes de todas as principais religiões no país. Com essa iniciativa, busco promover um debate aberto e plural, no qual pretendo colher a opinião de todos.

Também se inscreveram pensadores religiosos, leigos e ateus, que igualmente serão ouvidos. Em seguida, farei um relatório com as principais posições e apresentarei meu voto em Plenário.

Há três grandes valores em questão. O primeiro é a liberdade de religião, a possibilidade legítima de se professar uma crença e pretender conquistar adeptos para ela.

O segundo é o dever de neutralidade do Estado, que deve se abster de promover qualquer religião, bem como de dificultar o seu exercício.

O terceiro valor envolve o papel da religião na educação e no espaço público, no âmbito de um Estado democrático e de uma sociedade multicultural.

A vida civilizada aspira ao bem, ao correto e ao justo. Há os que buscam esse caminho em princípios religiosos. Há os que o procuram na filosofia moral. Muitas pessoas combinam ambas, a verdade revelada e a ética. E há muitos que professam um humanismo agnóstico ou ateu.

A verdade não tem dono, e o papel do Estado é assegurar que cada um possa viver a sua convicção, sem a exclusão do outro. O caminho do meio, feito do respeito ao próximo e da tolerância.

Como ensinam o Velho Testamento, os evangelhos, o budismo, Aristóteles, Immanuel Kant e todos aqueles que viveram para um mundo melhor e maior.


Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2015, 10h48