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19 dezembro 2023

Progresso versus cinismo

No dia 17 de Bichat de 169 (19.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime positivo).

No sermão abordamos a oposição entre a esperança vinculada ao progresso e o cinismo atual, buscando responder a uma questão ao mesmo tempo moral, intelectual, sociológica e histórica: como é que se passou da nobre e elevada esperança no aperfeiçoamento humano, vigente no século XIX, para o cinismo atual?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/W1qy7) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6rird). O sermão começou em 1h.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Progresso versus cinismo  

-        Hoje em dia, no início do século XXI, quando lemos Augusto Comte e os demais positivistas que escreviam no século XIX e início do século XX, dois aspectos surgem com grande clareza:

o   Por um lado, uma grande esperança no ser humano, no aperfeiçoamento das condições da humanidade (materiais, físicas, intelectuais e morais); essa esperança era sintetizada na noção de “progresso”

o   Por outro lado, seguindo o espírito da nossa época, quase instintivamente temos a impressão de que essa esperança mantida no século XIX era “ingênua”, da mesma forma que consideramos que seria mais “correta” uma perspectiva mais ressabiada, ou melhor, mais cínica

o   Entretanto, não há motivo nenhum para seguirmos o atual espírito da época e considerarmos que a esperança e o progresso do século XIX são ingênuos e, daí, desprezíveis

-        A respeito da esperança e do progresso afirmados pela Religião da Humanidade:

o   Afirmam a afetividade humana, o altruísmo, a possibilidade e a necessidade de conhecimento científico da realidade e do ser humano;

§  Afirmam esses conhecimentos a partir do relativismo e do historicismo, valorizando sempre a subjetividade humana

o   Também estabelecem um critério geral de moralidade (o estímulo ao altruísmo e a compressão do egoísmo), que ultrapassa o individualismo egoístico próprio às teologias e às suas metafísicas derivadas e que afirma a noção de dever acima da de direito

o   Afirmam que a paz, a fraternidade, o altruísmo, a colaboração surgem necessariamente da evolução histórica

§  Esses traços, de qualquer maneira, correspondem a tendências gerais, comportando variações e flutuações ao longo do tempo

§  Assim, não há motivo para supor que essas variações e flutuações correspondam à negação do progresso

o   Como observava Augusto Comte, o progresso é mais subjetivo que a ordem (ou seja, é mais diretamente relativa à realidade humana) e abarca aperfeiçoamentos em diversos âmbitos: material, físico, intelectual e, acima de tudo, moral

-        É importante considerarmos o que aconteceu nesse período, isto é, entre meados do século XIX e este início do século XXI:

o   Em termos afetivos, houve o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade entre o final da década de 1840 e meados da de 1850, sistematizando tendências amplas e gerais da humanidade e fortalecendo laços fraternos e altruístas entre povos, classes e grupos variados sobre bases reais

§  O desenvolvimento simultâneo de perspectivas internacionalistas e particularistas, às vezes com sobreposição, às vezes com distanciamento entre elas:

·         O internacionalismo é a afirmação de perspectivas internacionais, de concórdia entre nações (às vezes, equivocadamente, de fim das nações)

·         Os particularismos assumiram formas variadas:

o   Os nacionalismos, às vezes xenofóbicos, mas inicialmente como movimentos de afirmação das nações contra os grandes impérios coloniais,

o   A perspectiva de classe, especialmente do proletariado, contra a burguesia e contra o capital

§  Por vezes o particularismo de classe manifestou-se contra as nações, mas muitas vezes ele foi a favor de nações proletárias

§  Em todo caso, com gigantesca freqüência, o particularismo proletário serviu de apoio, mesmo de desculpa, para movimentos de independência nacional

o   Houve formas especialmente mesquinhas e agressivas de particularismos sobre outras bases, como no caso dos racismos antissemita e de vários outros

·         Citamos aqui os particularismos negativos porque eles tiveram uma terrível importância durante 30 anos no século XX

o   Indiretamente, esses particularismos negativos serviram para evidenciar que eles, na medida em que são particularismos, não servem para fundar sociabilidades maiores, que são as sociabilidades próprias à sociedade pacífica e industrial

o   Em termos intelectuais, podemos indicar o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade, sistematizando o conhecimento humano e permitindo e realizando a regularização e a moralização desses conhecimentos (ciência, filosofia, religião, arte, atividades práticas) em bases reais, humanas e relativas

§  Apesar desse importante acontecimento, a ciência continuou com seu impulso absoluto, indiferente à sua destinação humana

§  Ao mesmo tempo, tendências metafísicas particularistas ganharam espaço:

·         A psicanálise de Freud baseou-se no misticismo e na metafísica alemãs para tentar explicar a subjetividade humana, mas, além dos danos mentais causados em si pela metafísica, as noções de pansexualismo e de inconsciente estimularam, como estimulam, a desconfiança no ser humano

·         O marxismo, com suas infinitas correntes propositalmente “críticas”, estimulou (como estimula) o ódio entre as classes e os países e, daí, considera que tudo o que não é “proletário” é vil, enganador, mentiroso; além disso, a equívoca noção de “materialismo histórico” nega a realidade da moralidade

o   O marxismo é ambíguo a respeito da natureza humana: genericamente o ser humano é bom, mas só após a revolução comunista essa bondade manifestar-se-á

o   As desconfianças, o padrão crítico, o grande esquema histórico baseado na luta de classes: isso e muito mais serve de exemplo permanente para outros movimentos metafísicos e críticos, como o identitarismo negro de origem estadunidense e, ainda mais, o identitarismo feminista

·         Concepções irracionalistas, por vezes mais próximas da poesia e do misticismo que da ciência e da filosofia (como Nietzsche), além de concepções anticientíficas (como as de Bergson e de Max Weber) rejeitaram a possibilidade de estudos científicos do ser humano e de filosofias gerais (e relativistas e humanas) sobre a realidade

o   Muitas dessas concepções irracionalistas (incluindo aí nacionalismos e preconceitos de raça), não por acaso, nega(va)m a paz e estimula(va)m a violência e/ou o culto à violência

o   Em termos práticos, tivemos o seguinte:

§  Além dos amplos, gerais e consistentes esforços dos positivistas em todo o Ocidente em favor da paz, da concórdia, da fraternidade internacional e interna aos países, houve inúmeros movimentos pacifistas, internacionalistas, pela regularização das relações industriais etc.

·         Podemos incluir aí alguns grupos anarquistas, vários movimentos socialistas e mesmo alguns movimentos teológicos sensíveis às condições de vida dos trabalhadores e das sociedades modernas

·         Os nacionalismos de independência, de modo geral, também atuaram no sentido de melhorar as condições de vida, ao afirmarem o respeito às particularidades culturais locais

§  Ocorreu também a difusão do republicanismo, ou seja, da perspectiva humana e meritocrática na política, incluindo aí o estabelecimento da separação entre igreja e Estado

§  Uma prática internacional baseada na diplomacia de segredos (Bismarck) e da corrida colonial de prestígio

§  Afirmação de certos hábitos mentais e práticos burguesocráticos

o   Em suma: ao longo do século XIX tivemos grandes e importantes desenvolvimentos da Humanidade, ou seja, na direção da positividade, ao mesmo tempo que tendências metafísicas, críticas e destruidoras mantiveram seus ímpetos

o   O grande período de clivagem é a I Guerra Mundial (1914-1919), ou melhor, a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945)

 

Os trechos abaixo, destacados em caixas, foram omitidos em linhas gerais na exposição oral da prédica, pois alongariam demais essa exposição oral; ainda assim, são observações úteis para a presente reflexão e, portanto, mantêm-se nestas anotações.

§  A II Guerra dos 30 Anos é composta por três fases: I Grande Guerra (1914-1919), Período de Paz Armada (1919-1939) e II Grande Guerra (1939-1945)

§  Para o que nos interessa, os períodos mais importantes são o da I Grande Guerra, que matou gerações de positivistas, e o Período da Paz Armada, que estimulou e deu livre curso às piores tendências negativas anteriores a 1914 (nacionalismo xenofóbico, irracionalismo, culto à violência, preconceitos de raça etc.)

·         A I Guerra apresentou uma dinâmica nova, em que os soldados ficavam meses a fio nas trincheiras, sob a tensão constante dos combates, sujeitos a ataques violentos e muito agressivos

·         Essas tendências, como se sabe, consubstanciaram-se em movimentos sociais como o comunismo (com as Revoluções Russas em 1917), o fascismo (com a Marcha sobre Roma, em 1922), o nazismo (desde 1922, no poder desde 1933) e diversos outros movimentos autoritários (Frente Nacional na França, franquismo na Espanha, Estado Novo em Portugal etc.)

·         Esses movimentos, devido a seus conteúdos, na esteira da violência da I Grande Guerra, puseram em suspeição as liberdades, o ideal de fraternidade etc.

o    O mundo não ficou incólume a isso: no Brasil tivemos a crítica à I República transformando-se em crítica degradante ao republicanismo; houve o elogio mundial ao autoritarismo; o Japão deu livre curso ao seu violento imperialismo no Leste Asiático etc.

·         A II Grande Guerra, além da sua violência própria, deu lugar ao chamado “Holocausto”, com o genocídio praticado em escala e com métodos industriais

-         A II Guerra dos 30 Anos estimulou movimentos irracionalistas, autoritários, genocidas etc.; mas, no final das contas, foi um longo e dolorosíssimo interregno entre aspirações altruístas, fraternas, pacifistas etc.

o    Um pequeno indicador desse caráter de interregno é a constituição da Organização das Nações Unidas logo em seguida ao conflito e cuja fundação foi acertada pelo menos desde o ano anterior ao término da guerra

-         Com o término da II Guerra dos 30 Anos, alguns movimentos positivos voltaram à ação; mas, ao mesmo tempo, elementos críticos também mantiveram seu curso

o    Um pouco do sentimento de esperança vigente antes da II Guerra dos 30 Anos foi recuperado após o conflito: novamente, a fundação da ONU e do sistema ONU é parte disso, assim como outros movimentos que tiveram lugar nas décadas seguintes: o reconhecimento e o repúdio aos crimes do nazismo; o desenvolvimento do Welfare State; o impulso para o desenvolvimento econômico e social; mais importante, a descolonização da África e da Ásia (iniciada em 1947 com a independência da Índia)

o    A Guerra Fria (1947-1991), baseada na disputa entre Estados Unidos e União Soviética, refletindo uma oposição ao mesmo tempo geopolítica e “ideológica”, teve um caráter ambígüo em termos da esperança e do progresso:

§  Por um lado, os países-líderes difundiam a esperança nas próprias perspectivas (limitadas em si mesmas) e degradavam as perspectivas rivais

§  Por outro lado, o aspecto de guerra por procuração entre as superpotências conduziu a uma instabilidade marcada nos países periféricos, que, a partir dos anos 1950, logo se converteu em golpes militares

§  O advento da televisão, da mentalidade “pós-materialista” no Ocidente e de guerras que se tornaram cada vez mais difíceis de serem justificadas (Vietnã para os Estados Unidos, Afeganistão para a União Soviética, mesmo Vietnã para a China) minaram a confiança internacional nas superpotências

o    Alguns outros aspectos podem ser indicados:

§  A reflexão sobre o Holocausto conduziu muitas pessoas a decretarem, pura e simplesmente, que a esperança na Humanidade e que a noção de progresso são ilusões, que devem ser descartadas e substituídas por um severo “realismo” – que, no final das contas e na prática é muito próximo do cinismo

§  Além disso, a partir dos anos 1960 a chamada “contracultura”, que já vinha desde a década anterior, atuou sistematicamente para minar todos os valores do Ocidente, evidenciando o caráter metafísico do seu irracionalismo, do seu amoralismo e da violenta ruptura entre gerações

§  O marxismo manteve sua atuação crítica, por meio de suas inúmeras metamorfoses, pró, anti, cripto ou parassoviéticas, mas todas elas afirmando os aspectos metafísicos dessa filosofia: a luta de classes e a desconfiança social erigida em princípio normativo, a degradação da moral via sua redução a interesses de classes, a rejeição de toda concepção que não seja marxista (ou que não seja da própria seita), o particularismo proletário-marxista – além do culto à violência, presente hipocritamente em Marx e repetido de diversas maneiras em muitas das suas seitas derivadas

-         O fim da Guerra Fria deu novo alento à noção de progresso, mas sua vinculação à metafísica triunfalista do liberalismo dos EUA, somada à crítica metafísica marxista, conduziu a um novo descrédito da noção de progresso e da esperança

-         Nas últimas duas décadas, duas correntes metafísicas têm tido grande sucesso, ambas contrárias à esperança e ao progresso:

o    A metafísica mística do tradicionalismo, altamente retrógrada e vigente, por exemplo, no Leste Europeu e na Rússia

o    A metafísica irracionalista, agressiva e particularista do identitarismo, que se difunde a partir dos Estados Unidos e, graças ao servilismo intelectual próprio às “elites” intelectuais brasileiras, tem tido grande sucesso em nosso país

 

-        A maior parte deste relato foi uma exposição histórica de como a bela idéia do progresso atuou no século XIX e no começo do século XX, mas viu-se combatida e combalida no século XX, com uma seqüência no século XXI

o   Os problemas enfrentados por essa concepção ligam-se, então, a movimentos autoritários, violentos, (ir)racionalistas do começo do século XX, bem como ao impulso irracionalista e crítico de intelectuais, a maior parte dos quais são academicistas

o   Aqui é necessário afirmar com clareza: os hábitos academicistas estimulam a criticidade antiprogressista e antiesperançosa como virtude moral e intelectual, como suposta marca de superioridade intelectual

§  Essa criticidade pode ser vista na metafísica dos marxistas e também na metafísica dos místicos

-        Entretanto, ninguém – ninguém! – vive sem esperança, ao mesmo tempo em que todos – todos! – alimentam noções de progresso

o   A esperança e o progresso são alimentados por todos mesmo que só de maneira implícita, muitas vezes sem que reconheçam (mesmo para si próprios) essas concepções

o   Todos afirmamos a esperança porque todos precisamos considerar que as coisas vão melhorar; assim, essa é uma questão de saúde mental

o   A noção de que as coisas vão melhorar implica, necessariamente, a noção de progresso, isto é, de desenvolvimento e de aperfeiçoamento material, físico, intelectual e moral

o   Só é possível haver progresso a partir das leis naturais, do relativismo, do subjetivismo, do historicismo próprios à Religião da Humanidade

§  Assim, só é possível haver esperança verdadeira nos quadros do Positivismo

-        No século XIX Augusto Comte reconhecia a validade moral, intelectual e mesmo artística das utopias

o   Na verdade, Augusto Comte afirmava mesmo que as utopias são um gênero literário moderno!

o   Nas últimas décadas – talvez desde os anos 1970 – em vez de utopias o que temos são as chamadas “distopias”

o   As “distopias” são idealizações invertidas, em que não se apresentam quadros da boa sociedade, mas das más sociedades

o   As distopias são produzidas por estúdios de cinema e TV que querem ganhar muito dinheiro com a degradação humana e são consumidas avidamente pelo Ocidente e, daí, pelo resto do mundo

§  Deveria ser evidente – mas a indústria cultural finge que não é – que as distopias alimentam o cinismo, a desconfiança, o isolamento, o egoísmo, o irracionalismo, o imoralismo

o   Assim, é necessário – com urgência e convicção – deixarmos de lado as degradantes "distopias", que no final servem apenas para a “indústria cultural capitalista”, e retomarmos as utopias

o   A retomada das utopias vincula-se intimamente à retomada das noções de esperança e de progresso

§  A retomada dessas noções fará bem para a saúde mental de cada um de nós; dará uma destinação social e altruísta clara para cada um nós; permitirá que os urgentes problemas sociais que vivemos sejam solucionados (ou, pelo menos, encaminhados)

26 outubro 2023

Augusto Comte: sobre o progresso; proletários no poder

Três citações de Augusto Comte que valem a difusão direta e a reflexão: a primeira trata dos tipos de progresso e da subjetividade dessa noção; as outras duas citações tratam das qualidades morais e intelectuais próprias ao proletariado e que justificam que a chefia dos governos esteja em suas mãos. 

(As duas últimas citações foram traduzidas do francês por mim.)

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Sobre tipos de progresso e sobre a subjetividade da noção de progresso

“Distinguem-se, assim, duas espécies de progresso, um exterior, outro humano. Embora ambos se refiram finalmente a nós mesmos, só o último diz respeito à nossa própria natureza, e o primeiro limita-se à nossa situação, que ele melhora reagindo sobre todas as existências capazes de afetar a nossa. É por isso que esse progresso exterior é habitualmente qualificado de material, se bem que se estenda à ordem vital propriamente dita [ou seja, aos seres vivos], mas apenas em relação às espécies que nos servem de provisões ou de instrumentos. O ponto de vista do progresso sendo necessariamente mais subjetivo que o da ordem, a uniformidade da linguagem nem sempre corresponde, nele, à identidade de noções” (Augusto Comte, Catecismo positivista, São Paulo, editora Nova Cultural, 1996, p. 252; sem itálico no original).

Proletários como chefes políticos superiores devido às suas qualidades morais e intelectuais

“Rejeitando todo prestígio pedantocrático ou aristocrático, um exame racional mostra facilmente [...] que, entre o povo, a generalidade dos pensamentos e a generosidade dos sentimentos são mais fáceis e mais diretos que em qualquer outra parte. Uma falta ordinária de noções e de hábitos administrativos tornaria nossos proletários pouco próprios aos diversos ofícios especiais do governo prático. Mas disso não resulta nenhuma exclusão quanto à autoridade suprema, nem a respeito de todas as altas funções temporais que exigem uma verdadeira generalidade sem supor nenhuma especialidade” (Augusto Comte, Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, 5ª ed., Paris, L. Mathias, 1929, p. 200; sem itálico no original).

 “A razão pública repudiará doravante, como sendo ao mesmo tempo perturbador e atrasado, todo doutor que pretenda comandar e todo governante que deseje ensinar” (Augusto Comte, Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, 5ª ed., Paris, L. Mathias, 1929, p. 202).

14 dezembro 2022

Comentários sobre o progresso

No dia 11 de Bichat de 168 (13.12.2022) realizamos nossa prédica positiva. Após a leitura comentada do Catecismo Positivista (na Quarta Conferência do livro), fizemos alguns comentários sobre o conceito de "progresso", nas nossas reflexões semanais.

As anotações que serviram de base para esses comentários sobre o progresso estão reproduzidas abaixo. 

A exposição gravada ao vivo dos comentários sobre o progresso está disponível no canal Apostolado Positivista (aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1113142389387222) e no canal Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=NBIfoej-Ejs); no canal Apostolado Positivista, está a partir de 44' 25".

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Comentários sobre o progresso

 -        É importante ter clareza a respeito disto: estas anotações não procuram esgotar o tema

-        O conceito de progresso é um dos mais problemáticos atualmente

o   Durante muito tempo – digamos, desde o final do século XIX e todo o século XX – o progresso foi o principal valor social e político

§  O conteúdo específico do progresso era discutido, mas o valor em si, não

§  A afirmação do progresso podia ocorrer com sacrifício ou não da ordem

o   Neste início do século XXI, o progresso passou a ser rejeitado em nome da ordem, especialmente a partir de perspectivas conservadoras, reacionárias ou retrógradas

§  Em outras palavras, a partir deste século XXI muitos grupos passaram a adotar em relação ao progresso uma perspectiva inversa à que se manteve ao longo do século XX

-        Se ainda fosse necessário dizê-lo: a única filosofia social e política que afirma com todas as letras a necessidade e a possibilidade de conjugar a ordem e o progresso é o Positivismo

o   Dessa forma, embora todas as filosofias sociais e políticas que tratam do progresso abordem a ordem (implícita ou explicitamente), no caso do Positivismo essa referência dupla é obrigatória

o   Cabe lembrar que a divisa “Ordem e Progresso” é de caráter científico e político e é algumas décadas anterior à fórmula moral e religiosa “O amor por princípio...”

-        Para o Positivismo, e ao contrário das concepções teológicas ou metafísicas, tanto a ordem quanto o progresso têm conteúdos positivos, que devem ser afirmados, respeitados e valorizados

-        “O progresso é o desenvolvimento da ordem”

o   Inversamente, “a ordem é a consolidação do progresso”

o   A ordem tem que ser entendida como “arranjo”; aí, o progresso é o desenvolvimento dos elementos, das relações e da “lógica” própria a esse arranjo

§  A ordem a que se refere Augusto Comte e cujo desenvolvimento constitui o progresso não é a “ordem capitalista” (nem a “ordem eurocêntrica”, nem a “ordem patriarcal”): é a ordem própria à natureza humana

o   Assim, o progresso constitui em última análise no desenvolvimento pleno e simultâneo da características da natureza humana (sentimentos, inteligência, atividade)

o   A ordem corresponde à Sociologia Estática (a permanência, a consolidação) e o progresso, à Sociologia Dinâmica (a mudança, o desenvolvimento)

§  Mas não se pode cometer o grave equívoco de considerar que as mudanças em si constituem o progresso

·         Não é qualquer mudança que constitui o progresso

·         Da mesma forma, querer acelerar, sempre e cada vez mais, as mudanças, não é o mesmo que ser sempre e cada vez mais “progressista”

-        Como o progresso que deve corresponder à divisa “Ordem e Progresso” e à fórmula “O amor por princípio” refere-se ao conjunto da natureza humana, a noção de “harmonia” impõe-se e, a partir daí, também as concepções de “síntese”, de “consenso”, de “visão de conjunto” e daí, por extensão e definição, a de “religião”

o   O desenvolvimento contínuo tem por primado e motor a afetividade, isto é, o altruísmo (ou o amor); assim, o principal progresso é o moral; depois, é o intelectual; depois, é o físico; depois, é o material

o   Essa sequência de tipos de progresso – moral, intelectual, físico, material – indica a ordem de importância, de dignidade e de dificuldade (a sequência inversa indica a ordem de facilidade)

-        Fora do âmbito do Positivismo, em termos “populares” há uma associação entre o progresso e a noção de “igualdade”

o   Tal associação é proposta pela “esquerda” como um valor positivo

§  Vale notar que a “direita” também aceita essa associação, embora para criticá-la

§  Enquanto a esquerda de modo geral afirma o progresso (mas de maneira incoerente e irracional), a direita de modo geral rejeita o progresso (e também de maneira incoerente e irracional)

o   O conceito de progresso, aí, é ou indefinido ou é a expansão da “igualdade”

o   O conceito de progresso, aí, opõe-se radicalmente à noção de ordem (que, por sua vez, também é indefinida e/ou equivale a opressão política, exploração econômica e alienação moral)

o   Essa concepção de progresso, embora indefinida e/ou sinônima da “igualdade”, habitualmente é contraposta de maneira frontal à concepção positivista de progresso, que, por sua vez, é entendida pela esquerda (especialmente a marxista) como equivalente ao desenvolvimento do capitalismo

§  A má-fé marxista, além disso, afirma que a concepção positivista de progresso que estabelece antes de mais nada o progresso moral é uma concepção “ideológica” própria à “burguesia”, no sentido de que serviria apenas para iludir o proletariado e manter a opressão-exploração-alienação capitalista

§  A direita católica, reacionária e/ou ultraliberal rejeita o progresso e contrapõe a ele a noção de ordem, que, por sua vez, seria sempre estática

§  Para essas direitas, qualquer noção de progresso será sempre e necessariamente opressiva, exploradora e alienante

o   Por outro lado, a esquerda pós-moderna nega o progresso (assim como nega a racionalidade, a ciência, a objetividade etc.)

-        Apesar do que afirmam a direita e a esquerda, a noção de progresso não equivale à ampliação da noção de “igualdade”, nem mesmo, em rigor, à noção de liberdade

o   A noção de “igualdade” social é metafísica e tem um caráter destruidor; ela serve para destruir as instituições, as práticas e a ordem antiga, mas em si mesma é incapaz de criar qualquer coisa

§  Essa noção social de igualdade é de origem rousseauniana e foi retomada no século XIX pelo marxismo

o   As instituições, as práticas e as ordens supostamente criadas pela “igualdade” ou são instáveis (e autoritárias) ou, caso persistam e não sejam autoritárias, são inspiradas pela fraternidade e pelo altruísmo

§  As instituições criadas com o objetivo de estabelecer e manter a “igualdade” social e política resultam no autoritarismo, nas divisões e na ausência de “igualdade”

·         Para o Positivismo, a vinculação entre igualdade social e regimes liberticidas é necessária e não acidental

·         Além de liberticidas, os regimes que buscam criar e manter a igualdade social também, e não por acaso, buscam impor crenças oficiais (religião civil de Rousseau, marxismo nos países comunistas)

§  Apenas em duas situações é possível falar em “igualdade” no âmbito do Positivismo:

·         A igualdade perante a lei (a isonomia) e uma relativa igualdade de ensino são duas exceções à crítica positivista à igualdade

·         O disciplinamento social e moral da riqueza – com os aspectos correlatos de destinação social da riqueza; de responsabilidade individual e coletiva dos poderes sociais; de dignificação da pobreza – é algo que resulta no que se pode chamar, atualmente, de “eqüidade social”

o   A eqüidade social não se confunde, de maneira nenhuma, com a igualdade; mas, apesar disso, é esse o resultado concreto que se busca com as políticas públicas que, nominal, oficial e incoerentemente, afirmam realizar a “igualdade social”

·         Poderíamos atualmente acrescentar a essa lista as políticas sociais universalistas, como, no caso do Brasil, as políticas de seguridade social (saúde, desemprego, previdência social)

o   A liberdade em si mesma é a condição de realização do progresso; da mesma forma, ela é a condição da ordem

§  A liberdade tem que ser afirmada e respeitada, mas ela não pode ser entendida como um valor absoluto, pois, nesse caso, assumirá um caráter metafísico e meramente destrutivo ou de irresponsabilidade individual e coletiva (como no caso do liberalismo)

-        Para concluir, é importante reforçar e aplicar um aspecto: para o Positivismo, o progresso é o desenvolvimento da ordem:

o   Muitos dos aspectos julgados “progressistas” nos dias atuais deveriam ser encarados pura e simplesmente condições da ordem

§  Um ótimo exemplo de condições da ordem que, entretanto, são vistas como realização do progresso são os salários dignos

§  Essa confusão entre elementos da ordem e realização do progresso indica pelo menos duas coisas: (1) a confusão moral e intelectual prevalecente no mundo atual (em particular na direita e na esquerda) e (2) a degradação moral em que se encontra o mundo atual

o   O progresso que desrespeita a ordem não é progresso

§  Dois exemplos: (1) nos séculos XIX e XX os marxistas queriam, revolucionariamente, acabar com o Estado e a propriedade privada; (2) no século XXI, muitas propostas identitárias buscam desarticular a família

§  O “progresso” que desrespeita a ordem é sempre de caráter metafísico e, portanto, é destruidor e tem sempre em vista as instituições e as práticas absolutas de origem teológica

o   Como dizia Augusto Comte, mudanças rápidas (“revolucionárias”) nunca são profundas e, inversamente, mudanças profundas sempre são lentas

§  Forçar as mudanças sociais, especialmente no sentido de acelerá-las, com enorme freqüência torna essas mudanças instáveis e provoca reações sociais; para conter a instabilidade e as reações, o emprego da violência física (e, não raro, da censura) é necessário

§  Mudanças rápidas que se realizam sem grandes tensões e/ou sem grande instabilidade são mudanças que foram preparadas antes, com freqüência de maneira subterrânea