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14 maio 2017

Ricardo Alves: "Fátima e a transformação do catolicismo português"

Reproduzo abaixo um texto pequeno mas extremamente informativo, escrito pelo republicano português Ricardo Alves, a propósito das supostas "aparições de Fátima", que completam um século neste ano. Embora escrito em 2008, a efeméride demonstra que o artigo abaixo é, infelizmente, atualíssimo.

Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.

O original pode ser lido aqui.

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Fátima e a transformação do catolicismo português


As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.
Fátima I: a manifestação anti-republicana
No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.
No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].
Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.
Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.
Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.
Fátima II: o santuário do Estado Novo
Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».
Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.
O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».
Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia
Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.
Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.
Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.
Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.[9]
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 –  Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 – Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Ricardo Alves
Setembro de 2008

[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.
[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.
[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.
[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).
[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.
[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.
[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).
[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).

"Vatileaks" e a violenta corrupção financeira no Vaticano

A entrevista abaixo foi recentemente publicada na revista portuguesa Visão; ela indica o fato escandaloso de que o Vaticano, isto é, a Cúria da Igreja Católica, embolsa por baixo 80% dos recursos arrecadados para auxílio aos pobres. Além disso, a entrevista também indica que a canonização é um negócio como qualquer outro e no qual é necessário fazer pesados investimentos financeiros.

Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.

O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.

O original da entrevista encontra-se disponível aqui.

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"O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro recolhido fica para os cardeais, em vez de ir para os pobres"
MUNDO 09.05.2016 às 9h47






Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks

Isabel Nery
ISABEL NERY
Jornalista

O dinheiro do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.

Quais foram as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para pobres nem para refugiados.

Como é que usam o dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.

De onde vinha todo esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.

Quer dizer que nos países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.

O Vaticano é avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.

Vive num país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de investigação, como eu.

Conseguiu publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na história.

Ficou isolado com a publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha revista.

Quem lhe passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso trabalho.

Que leitura faz do facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.

Mas, lendo o seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem problemas com as finanças.

Por haver demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível! É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.

Está desiludido com Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora está sozinho. Tem muitos inimigos.

O Papa corre mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.

Tendo em conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar, não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte e Francisco quis mudar isso.

A popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.

Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires. Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.

Como reagiu àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro era mau para a Igreja.

Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá ajudar no futuro.

Preocupa-o que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.

Ninguém o acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.

Nos processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.

Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo em tribunal do que no jornal.

Que pena poderão aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.

A possível ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter problemas com a lei italiana.

Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.

Sendo pouco provável a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque. Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema político se me acusarem.

O seu livro mudará alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o que escrever.

Quer dizer que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as minhas denúncias.

É Católico?

Sou agnóstico.

23 janeiro 2017

Senado Federal examina fim da isenção tributária de igrejas

É absolutamente lamentável que o Senado Federal seja obrigado a examinar u'a medida dessas. 

Entretanto, essa necessidade decorre da atuação ainda mais lamentável, odiosa, degradante das igrejas - especialmente as igrejas evangélicas e também a católica - que usam essa isenção para enriquecerem às custas da miséria material, moral e filosófica de seus aderentes. E também para fazerem lavagem de dinheiro, para evadirem divisas e para não serem devidamente tributadas pelo fisco.

O original da notícia da matéria da Agência Senado encontra-se disponível aqui.

Logo após a notícia do Senado Federal, reproduzo um artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo em fevereiro de 2016, em que, a contragosto, apóio o fim da isenção tributária de igrejas. Mantenho essas posições exprimidas há quase um ano. O original encontra-se disponível aqui.

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Senado analisa sugestão de dar fim à imunidade tributária para igrejas

   
Da Redação | 23/01/2017, 11h37

Proposições legislativas

Está em análise no Senado a sugestão legislativa (SUG 2/2015) que pede o fim da imunidade tributária para entidades religiosas. Iniciada por uma internauta no portal E-Cidadania, a consulta obteve mais de 20 mil apoios e passou a ser analisada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Se aprovada pela comissão, pode virar projeto de lei.
A sugestão é uma das mais populares em número de votos no portal. Até a tarde desta quinta-feira, havia recebido 95.577 votos a favor e 82.673 contra. Na comissão, o relator é o senador José Medeiros (PSD-MT). Ele recebeu a relatoria em outubro, após dois outros senadores designados para a tarefa terem devolvido o texto para redistribuição e outro ter deixado a CDH.
A ideia foi apresentada por Gisele Helmer, moradora do Espírito Santo. Publicada em março de 2016 no portal, a sugestão obteve o número necessário de votos (20 mil) em junho do mesmo ano.  A autora apontou os escândalos protagonizados por líderes religiosos. Além disso, argumentou que o Estado é laico e que qualquer organização que permite o enriquecimento dos seus líderes deve ser tributada.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)



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Tributação contra a imoralidade


Consideremos duas situações históricas. A primeira: quando da Proclamação da República no Brasil, em 1889, os positivistas tinham uma preocupação particular: garantir que o governo e o Estado não interferissem no chamado “poder espiritual” (as diversas religiões e igrejas) e nas liberdades de pensamento e expressão. O fundamento da ação do Estado é o uso da violência, mesmo que essa violência atue sob o amparo da lei; assim, o Estado pode interferir na liberdade de pensamento de diferentes maneiras, das quais duas mais óbvias são a censura e a imposição de currículos escolares específicos. Isso não é novidade e mesmo neste início do século 21 vemos como tais possibilidades são bastante concretas.
Mas outra forma de o Estado interferir na liberdade religiosa, menos evidente, é via tributação. Para pagar os impostos é necessário ter recursos; como o “poder espiritual” não gera riquezas, os impostos podem ser uma forma extremamente eficaz e simples de impedir que organizações da sociedade civil manifestem suas perspectivas. Foi levando em consideração essa possibilidade, também não desprezível, que os positivistas foram favoráveis à isenção tributária das igrejas, em uma regra que se manteve desde então.
Essas duas situações compõem a moldura histórica para o debate teórico-político que se apresenta atualmente no Brasil, em que se propõe a tributação de igrejas. Por que essa proposta? No Brasil, há uma situação consolidada há tempos e de que as igrejas – Católica e protestantes – se aproveitam, buscando, aliás, aumentar cada vez mais suas prerrogativas, com frequência sem entender que essa isenção é um gigantesco privilégio e sem se preocupar em fazer jus a ele. Vê-se proliferarem igrejas com templos cada vez maiores e ostentatórios, pregando o enriquecimento a qualquer custo e sendo proprietárias de enormes conglomerados comerciais, industriais, de serviços e financeiros; da mesma forma, sob as alegações mais estapafúrdias, auferem diariamente pequenas fortunas, cujos destinos, devido à isenção tributária, não podem ser controlados pelo governo (ou seja, com facilidade são canais para lavagem de dinheiro e evasão de divisas). Em outras palavras, a justificativa político-moral – e é disso que se trata aqui: de um problema político com um intenso fundamento moral – da isenção tributária perde intensidade, ou relevância, face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira.A outra situação é a da enorme e crescente riqueza material da Igreja Católica no fim da Idade Média. Recebendo donativos de seus fiéis, bem como tendo o apoio oficial dos governantes, os clérigos acumulavam cada vez mais bens, na forma de dinheiro ou de terras. Com isso, o clero tornava-se cada vez mais venal, preocupado mais com suas posses que com o bem-estar material e moral dos fiéis (que, por sua vez, eram em sua maioria pobres ou miseráveis). Contra tal estado de coisas levantou-se Francisco de Assis, que não por acaso defendeu a necessária pobreza do clero e fundou uma ordem religiosa mendicante. Como tal situação não se tenha modificado, a reação a ela foi um dos motivos para que, alguns séculos mais tarde, a Igreja Católica tenha sofrido um abalo mais sério, do qual jamais se recuperou e que foi o início da derrocada do monoteísmo no Ocidente: trata-se, é claro, do protestantismo, com as teses de Lutero.
É claro que as liberdades de pensamento e de expressão têm de ser preservadas, mas a imoralidade atual – que se agrava diante da crise financeira por que passa o país, que tende a piorar nos próximos anos – também tem de ser combatida com seriedade. Assim, um meio-termo é necessário, com várias medidas: fiscalização pública dos “rendimentos” eclesiásticos; tributação progressiva, com isenção para pequenas igrejas e índices crescentes para “rendas” maiores; proibição sumária de igrejas (e sacerdotes!) possuírem empresas de qualquer tipo. Por fim, proibição completa de que sacerdotes possam disputar cargos políticos.
Essas poucas medidas podem corrigir (ou evitar) alguns problemas seculares que o Brasil enfrenta. Irônico ou não, é necessário moralizar muitas (mas não todas) as instituições que, justamente, deveriam zelar pela moralidade pública e privada.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

02 setembro 2014

Carlos Eduardo Oliva: "deve-se compreender melhor o Estado laico"

Reproduzo abaixo alguns comentários que meu amigo Carlos Eduardo Oliva fez em 1º.9.2014, a propósito da idéia de "laicidade" defendida por alguns grupos sociais e por alguns políticos. Essas observações foram feitas no facebook, mas seu valor transcende a imediatez dessa rede social.

O original pode ser lido aqui.

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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação

[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente. 

Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!

23 setembro 2013

Do OLÉ: "Papa no Brasil: para onde foi a laicidade do Estado?"

Reproduzo abaixo postagem recente do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), em que trata da recente visita do papa Francisco ao Brasil, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (Católica) e das suas relações com a laicidade. 

É um relato minucioso - e, por isso, longo - do evento, indicando vários aspectos em que a laicidade foi francamente desrespeitada, por vezes da maneira mais acintosa e demagógica. 

O OLÉ é um dos poucos órgãos de pesquisa que valorizam a laicidade e assumem-na como um valor para a República, sem se curvar aos inúmeros sofismas contrários a ela - sofismas o mais das vezes produzidos por seus inimigos e repetidos por políticos e juristas interessados no Estado confessional (quando não teocrático).

O vínculo original da postagem encontra-se aqui.

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O PAPA NO BRASIL: PARA ONDE FOI A LAICIDADE DO ESTADO?

            A semana que o papa Francisco passou no Brasil (22-28/7/2013), bem como o período imediatamente anterior e posterior, propiciam uma ocasião privilegiada para se saber para onde vai a laicidade do Estado brasileiro. O que se fez e o que se deixou de fazer, o que se disse e o que se calou, o material e o simbólico, tudo isso recheou e revestiu a passagem do papa pelo Brasil.
            Para começar, não dá para não falar da Marcha para Jesus, promovida por igrejas evangélicas em várias cidades do país, de junho a agosto. Não foi, como parece à primeira vista, um desafio evangélico ao evento católico. Por mais que a rivalidade intra-campo religioso estivesse presente, o evento evangélico se realiza há duas décadas na capital paulista. E foi, de uma certa maneira, institucionalizada pela lei federal 12.025/2009, de iniciativa parlamentar e sancionada pelo presidente Lula, que instituiu o “Dia Nacional da Marcha para Jesus”, a ser comemorado, anualmente, no primeiro sábado subsequente aos 60 dias após o domingo da Páscoa. Não há dúvida que esse marco foi o contraponto da lei federal 6.802/1980, firmada pelo presidente general Figueiredo, que declarou feriado nacional o dia 12 de outubro “para o culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil.” Portanto, se algum desses eventos foi marcado para perto do outro foi o católico, não o evangélico.
            Em São Paulo, a “Marcha para Jesus” foi realizada em 29/6/2013, pouco menos de um mês antes da Jornada Mundial da Juventude (Católica). Durou um dia inteiro, contou com cerca de 2 milhões de pessoas de diversas denominações, e teve a presença de vários pastores, entre os quais os altamente polêmicos Silas Malafaia e Marcos Feliciano. A tônica geral das faixas foi de defesa do conservadorismo político e ideológico, com ênfase no confronto com o “ativismo gay”. A imprensa escrita e televisada desmereceu o evento evangélico, focalizando seu caráter local, o número de participantes inferior ao previsto e a presença de líderes polêmicos ou conservadores.
            Em contraste, a presença do papa Francisco no Rio de Janeiro e em Aparecida (SP), foi um sucesso de público e de crítica. Em sua primeira viagem fora da Itália, quatro meses depois de eleito papa, Francisco veio para a 26ª Jornada Mundial da Juventude, evento itinerante da Igreja Católica, cujas duas edições anteriores foram sediadas na Austrália e na Espanha. No Rio de Janeiro, o papa foi aclamado por milhões de pessoas à beira do delírio coletivo; a JMJ recebeu cobertura generosa dos meios de comunicação de massa; os governos federal, estadual e municipal esmeraram-se em mostrar-se atenciosos e convergentes com as ideias da Igreja Católica; mãos de clérigos punidos ou contidos pela Santa Sé foram erguidas ao pontífice. Este, por sua vez, esteve à vontade, falou um portunhol desenvolto, empregou expressões populares e até concedeu entrevista exclusiva à maior rede brasileira de TV. Os evangélicos, adversários principais no campo religioso, mantiveram conveniente silêncio sobre o megaevento. Rapidamente foram esquecidos os vexames da má programação oficial em matéria de trânsito urbano e de transporte público. Problemas da organização da própria administração da Jornada foram imputados aos governos do Estado e do Município da capital, que, devotos e solícitos, os assumiram. O caso mais célebre foi o da escolha, pelos promotores da Jornada, de um distante terreno na zona rural para as celebrações de massa. A advertência da administração pública de que se tratava de área alagadiça foi desconsiderada pelos organizadores. As fortes chuvas que caíram no Rio tornaram a área um grande lamaçal, mas as celebrações foram prontamente transferidas para a praia de Copacabana, que serviu de cenário para a prática do pensamento mágico, aliás incentivada pelo próprio papa – a oferta pelo prefeito de uma dúzia de ovos para Santa Clara, isto é, para o convento das freiras clarissas – uma simpatia para o sol voltar a brilhar. Contrariando os meteorologistas do Instituto de Pesquisas Espaciais, a volta do sol no último dia da Jornada foi atribuída a mais um efeito da ordem sobrenatural sobre a caprichosa natureza carioca.
            Passemos ao tema que nos interessa: para onde foi a laicidade do Estado?
            Financiamento público a evento privado
            O orçamento do Instituto da Jornada Mundial da Juventude era de 350 milhões de reais, a ser coberto pelas inscrições dos participantes, por doações privadas e contratos de patrocinadores empresariais (Bradesco, Itaú, Santander, Ferrero, Nestlé, McDonald’s, Tam Viagens e Havas).
            A estimativa do jornal O Globo foi que o Poder Público gastaria, indiretamente, 118 a 120 milhões de reais, dos quais 62 milhões seriam despendidos pelo governo federal. Estariam incluídos nesta cifra os gastos com o avião da FAB que foi a Roma buscar os dois “papa-móveis” a serem utilizados pelo pontífice no Brasil, além dos voos nos helicópteros militares empregados no seu deslocamento no Rio de Janeiro e no tour a Aparecida.
            Nessa estimativa não foram computados os custos de transporte dos bilhetes de ônibus, barcas e metrô que a Prefeitura do Rio distribuiu a milhares de participantes inscritos. Nem os gastos com serviços médicos e de ambulâncias, que o Instituto JMJ repassou para a Prefeitura do Rio. Inicialmente esses gastos, no valor de 7,8 milhões de reais, seriam assumidos pelo Instituto da Jornada. Mas, diante da redução do número de inscritos internacionais e previsão de déficit, os organizadores convenceram o prefeito a assumi-los. Um processo licitatório de urgência foi aberto, logo contestado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que, ainda antes do início do evento, abriu uma ação civil pública contra essa despesa adicional. O MP alegou que esse sobregasto estava fora do contrato anterior, além de haver vícios no processo e falhas procedimentais. O Tribunal não aceitou os argumentos do MP, a licitação foi feita e os ônus, assumidos pela Prefeitura.
            Os dirigentes da Igreja Católica e mesmo do Estado brasileiro (a convergência é notável), argumentaram que o papa, além de líder religioso é chefe de Estado (a ambiguidade parece não surpreender ninguém). Por isso, deveria receber tratamento adequado ao seu status. A ninguém ocorreu lembrar que o governo brasileiro jamais mandou buscar o carro próprio de chefe de Estado que visitou o Brasil: nem Barak Obama nem o rei Juan Carlos I. Só para citar dois exemplos. Nem pagou a visita para nenhum deles fazer proselitismo por aqui. Sinal dos tempos: não podendo se basear somente na devoção ou no oportunismo dos políticos,  dirigentes da Igreja Católica tiveram de se valer de um inédito discurso economicista para justificar os gastos públicos com a Jornada. Foi isso que fez o arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer. Ele disse que todo o gasto público seria feito no próprio país, iria gerar empregos e representaria uma “injeção de sangue na economia brasileira”. [O Globo, 16/7/2013, p. 18]
            De um ponto de vista puramente economicista, os resultados do evento podem dar razão ao arcebispo de São Paulo: mesmo que os gastos públicos tenham sido superiores aos 120 milhões previstos antes do evento, as estimativas é que foram injetados 1,8 bilhão de reais na economia do Rio de Janeiro (O Globo, 28/7/2013, Caderno Especial, p. 8-A). O ganho teria sido superior da Copa das Confederações de Futebol.
            Mas, se o mercado ganhou, o Estado perdeu – não só o Estado do Rio de Janeiro e de sua capital, mas todas as instâncias do Estado brasileiro. Perdeu substância na difícil construção da laicidade. Para um micro-economista, a laicidade não passa de um detalhe.
            Argumentos economicistas, como o que circulou na cabeça e na fala dos dirigentes religiosos e políticos, podem justificar muita coisa ruim, inclusive o turismo sexual, tão generoso no reforço da renda de milhares de miseráveis famílias nordestinas.
            Vassalagem das autoridades e suas mulheres
            Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro tinha o “complexo de vira-lata”, de povo colonizado, tamanha era sua atitude servil diante dos estrangeiros. Se ele fosse vivo, talvez dissesse que os ocupantes de cargos públicos, no Brasil, têm “complexo de vassalos”, tamanho é seu gosto por reverenciar um monarca: curvar-se diante de um rei ou uma rainha, é sinal de vassalagem muito apreciado por nossas, digamos, elites. Pois o papa é um monarca, aliás absolutista, com a vantagem de ser também dirigente da religião dominante no Brasil. As atitudes de vassalagem para com ele teriam tríplice dimensão: sujeição diante do estrangeiro, do monarca e do chefe da Igreja dominante.
            Isso não é invenção recente. Em 1985, quando presidente da República, o atual senador José Sarney, ao visitar o papa João Paulo II no Vaticano, curvou-se e beijou-lhe a mão (ou anel). Quando o mesmo pontífice veio ao Brasil, em 1997, havia a expectativa sobre o que faria Fernando Henrique Cardoso. Ele apertou-lhe a mão, o mesmo fez sua mulher Ruth Cardoso. Ao visitar o Vaticano, em 2008, o presidente Lula apertou a mão do mesmo papa, mas sua mulher, Marisa, curvou-se e beijou-lhe a mão (ou anel). Desta feita, na recepção ao papa Francisco, a presidenta Dilma Rousseff comportou-se com dignidade. Apertou a mão do papa, mas recebeu dele beijos na face. O mesmo, no entanto, não fizeram outros dignatários do Estado brasileiro. Ministros de Estado, parlamentares e chefes militares aproveitaram a oportunidade de serem apresentados ao papa para exibir sua devoção pessoal. Em detrimento de suas posições oficiais, curvaram-se e beijaram contritos a mão (ou anel) do papa Francisco, diante das vistas de milhões de telespectadores. Suas mulheres foram ainda mais acintosas nos atos de vassalagem. O longo e intenso vínculo das mulheres com o Cristianismo, que se materializou na sujeição de seus corpos e de suas mentes, expressou-se, então, nas manifestações “espontâneas” de vassalagem ao papa. Mesmo que os maridos apenas apertassem a mão do pontífice, elas faziam mesuras, meio que se ajoelhavam e beijavam a pontifícia mão (ou anel). Não vai comentada a situação simétrica (autoridade mulher e cônjuge masculino) pela raridade, senão inexistência no evento.
            Movimentos sociais
            No 30 dias anteriores à visita do papa, as maiores cidades do país foram palco de intensas manifestações de rua, com os mais diversos objetivos. Começaram com protestos contra as tarifas de transporte coletivo e logo foram estendidas aos governos estaduais e municipais, ao Congresso Nacional e ao governo federal. De pacíficas, foram se tornando também violentas, com destruição de alguns símbolos do capitalismo, como agências bancárias e agências de automóveis. Os gastos públicos com a Copa das Confederações de Futebol foram alvo direto dos manifestantes, que pediam saúde e educação públicas “padrão FIFA”. A repressão policial foi intensa e funcionou como incentivo de mais e violentas manifestações.
            Esse clima foi projetado para a visita do papa, temendo-se que os manifestantes pudessem comprometer o andamento das celebrações religiosas e políticas durante a Jornada Mundial da Juventude. Mas esses temores se mostraram infundados. Os movimentos de rua evitaram hostilizar os participantes da JMJ, seus dirigentes e suas instituições, preferindo manter os alvos anteriores, especialmente o governador do Estado do Rio de Janeiro e instituições estatais e empresariais. Enquanto os manifestantes insistiam em sitiar em casa o governador Sérgio Cabral, silenciavam-se sobre os gastos públicos com a Jornada. Há analistas da conjuntura política atual que apontam a presença de grupos anarquistas nessas manifestações. Sobre isso, cabe perguntar se os anarquistas brasileiros redefiniram a tradição anticlerical de seus antecessores. Com seu silêncio obsequioso deram um apoio inestimável ao sucesso da JMJ.
            A grande exceção foi a “Marcha das Vadias”, de 27/7/2013, que reuniu mais de 5 mil pessoas em Copacabana, em protesto contra a violência de gênero e violência sexual.
            Surgida no Canadá, em 2011, em resposta ao “conselho” de um policial para as jovens de um campus universitário, de não se vestirem como “vadias”, para não serem estupradas, mulheres de vários países assumem sua sexualidade e proclamam que, independentemente da roupa ou falta dela, a culpa será sempre do estuprador, nunca da vítima.
            Justamente no dia em que a “Marcha das Vadias” foi programada para a praia de Copacabana, seria iniciada no mesmo local a “vigília de oração” da Jornada. Com acesso facilitado pela transferência de local, do lamaçal de Guaratiba para a charmosa e central Copacabana, previa-se a afluência de alguns milhões de pessoas, engrossando o número de participantes. A “Marcha” reuniu movimentos feministas e grupos teatrais, com esquetes sobre a temática da descriminalização do aborto, da diversidade sexual, o fundamentalismo religioso e o racismo. Unindo todos estava a crítica aos preceitos morais da Igreja Católica. Convergentes com esse posicionamento, estavam presentes as Católicas pelo Direito de Decidir, do Brasil e de outros países latino-americanos. Apesar de bem humorada, houve momentos tensos, quando um manifestante quebrou imagens religiosas e outros manejavam desrespeitosamente símbolos e imagens de devoção católicas. Agressões houve também da parte de participantes da JMJ, que insultaram os manifestantes e cuspiram neles.
            De todo modo, o acirramento do confronto foi evitado com o desvio da “Marcha” para Ipanema, onde ela dissolveu após um “beijaço”.
            Entre os cartazes levados pelos participantes da “Marcha das Vadias”, havia alguns que mencionavam o Estado Laico, sempre positivamente, embora a sátira não concorresse para a busca de aliados nos domínios religiosos.
            Uma prévia desse evento, mas de menor porte, ocorreu no dia do desembarque do papa no Rio de Janeiro e sua recepção no Palácio Guanabara. No Largo do Machado, a poucas quadras desse local, um grupo teatral e militantes LGBT desenvolveram esquetes e portaram cartazes em defesa da liberdade sexual, mas acabaram suplantados por manifestantes contra o governador, que ignoraram a dimensão confessionalista do evento que se desenrolava no Palácio.
            O papa e a laicidade do Estado
            Francisco evitou falar diretamente de temas sensíveis nas relações do Estado brasileiro com os dirigentes católicos, principalmente aborto e casamento gay. Ele preferiu não bater de frente com as políticas governamentais que contrariam as orientações do Vaticano e da CNBB, mas fez gestos nesse sentido, embora tímidos. Por exemplo, na última missa do evento, a equipe vaticana levou ao altar uma criança anencéfala, nascida graças à decisão dos pais, católicos. A lei brasileira faculta o aborto nesses casos. O gesto da equipe foi uma discreta “defesa da vida”, uma mensagem aos católicos da posição da sua Igreja nesses casos. De fato, houve uma mudança de estratégia no trato de questões polêmicas. Em visitas anteriores, João Paulo II e Bento XVI fizeram críticas explícitas a políticas públicas, coisa que nenhum chefe de Estado faz no país anfitrião. Mudança de estratégia mas permanência de posição. Foi o que se pôde perceber no “kit peregrino” distribuído aos jovens inscritos na Jornada, voluntários e jornalistas credenciados. Ele incluía um manual com a posição oficial da Igreja, a mesma dos papas anteriores em matéria de aborto, reprodução assistida, eutanásia, homossexualidade e estrutura familiar. Em cada um desses pontos, a orientação do Vaticano colide com a legislação brasileira.
            Em reunião fechada, só para autoridades e convidados, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o papa Francisco usou a expressão Estado laico, a única vez em sua visita:
             “A pacífica convivência entre religiões diversas se vê beneficiada pela laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença da dimensão religiosa na sociedade, favorecendo suas expressões concretas.” [O Globo, 28/7/2013, Caderno Especial, p. 1]
            Uma visão bem restrita essa, a de pensar o Estado laico em função da convivência entre as religiões, esquecendo que a atuação de cada uma delas tem de ser feita na forma da lei, portanto o Estado está acima delas na esfera política, e mais, existe uma quantidade crescente de pessoas sem religião. E o Rio de Janeiro é o estado em que essa parcela é a mais alta no Brasil, 16%, o dobro da média nacional. O Estado laico existe também para os sem religião, inclusive para os anti-religiosos.
            Mesmo com essa autorreferência religiosa, Francisco Carlos Teixeira, professor titular de História da UFRJ, disse que a declaração do papa “acabou dando mais argumentos para a aprovação de políticas públicas que contrariam dogmas da própria Igreja.” [O Globo,  29/7/2013, Caderno Especial, p. 4] Vejamos como o Estado brasileiro, principalmente o Poder Legislativo, em todos os níveis, vai lidar com essa contradição: marcha adiante ou marcha a ré?
            O Estado Laico na TV
            Dois programas de TV foram dedicados ao Estado Laico, um gravado antes da Jornada, outro logo depois. Merecem destaque pelo contraste com as manifestações ostensivamente devotas da mídia brasileira ao papa e às celebrações em que esteve presente. O primeiro foi o “Observatório da Imprensa”, tradicional programa produzido e apresentado por Alberto Dines na TV Brasil, estatal. Gravado em 9/7, foi ao ar em 23/7/2013, durante a JMJ, portanto. Os entrevistados foram o filósofo Roberto Romano, da Unicamp; Daniel Aarão Reis, da UFF; e Jean Wyllys, historiador e deputado federal (PSOL-RJ). Dines justificou o tema abordado pelo programa como a oportunidade oferecida pelo evento católico para avaliar o papel da mídia eletrônica, frequentemente transformada em púlpito das religiões dominantes, a católica e a evangélica. Apesar das diferenças entre os entrevistados, eles convergiram na defesa da laicidade do Estado como condição para a democracia no Brasil. A conclusão pode ser sintetizada nas palavras do próprio Dines, para quem qualquer fissura no edifício republicano tende a ser continuamente ampliada. É um risco que não vale a pena correr, sobretudo nos momentos tensos em que vivemos. [video de acesso livre  http://www.observatoriodaimprensa.com.br/videos/view/a_vinda_do_papa_e_o_estado_laico ]  O segundo programa foi de emissora privada: “Na Moral”, da TV Globo. Apresentado por Pedro Bial, ele focaliza a mudança de comportamentos e de preceitos morais, sem se prender a uma pauta absoluta de valores. No caso do programa do dia 1/8/2013, praticamente uma semana depois da partida do papa, o tema foi o choque entre as religiões, que absolutizam a moral e o Estado Laico, que além de manter uma moral secular, protege a diversidade cultural. Os debatedores foram Daniel Sottomaior, da ATEA, o padre católico Jorjão, o pastor Silas Malafaia e o babalaô Ivanir dos Santos. Descontando a modéstia argumentativa do padre católico, o debate se deu entre a dupla Daniel-Ivanir contra o pastor Malafaia, isolado em sua arrogância e intolerância. O sambista Arlindo Cruz, igualmente convidado, fez a contraparte musical, com um repertório apoiador do ecumenismo de fato do povo brasileiro. O apresentador Bial revelou uma face distinta da que aparece no programa Big Brother, ao empregar bem conceitos pouco familiares ao pessoal da mídia, como a distinção entre Estado Ateu e Estado Laico, com o que calou a ferocidade do pastor. [acesso para assinantes globo.com  http://globotv.globo.com/rede-globo/na-moral/t/para-assinantes/v/na-moral-programa-do-dia-01082013-na-integra/2730908/]   Se o “Observatório da Imprensa” foi explicitamente montado com vistas à Jornada Mundial da Juventude, “Na Moral” pode ser, sem dúvida alguma, explicado como resultado não intencionado do mesmo evento. Apenas um exercício de Comunicação Social: se somarmos a audiência de ambos os programas, eles podem ter atingido mais, tanto ou menos gente do que os participantes da Jornada?
            Tudo somado, o que se pode esperar do papa Francisco em matéria de posições laicas?
            A realização da Jornada Mundial da Juventude no Brasil não foi por acaso. Maior país católico do mundo, é justamente aqui que se dá a mais pronunciada redução do número relativo de adeptos do catolicismo, em proveito de confissões evangélicas, principalmente as pentecostais. A visita do papa valorizou o protagonismo dos católicos no âmbito de sua igreja e na evangelização, vale dizer, na competição no interior do campo religioso. Com efeito, se as diretrizes do pontífice forem traduzidas em atos, é de se esperar a mudança de uma atitude passiva da hierarquia e dos leigos católicos diante do crescimento dos evangélicos, para adotarem uma atitude ativa e militante de reconquista dos fieis perdidos para os pentecostais. A entrevista concedida pelo papa Francisco à TV Globo deixou clara essa disposição de cruzado. Evitou falar do Brasil, para o que foi convocado pelo entrevistador, mas citou um elucidativo caso argentino. Uma mulher do sul daquele país disse a um padre que visitava seu lugarejo, o primeiro depois de muitos anos, que ela e os demais católicos foram abandonados pela Igreja (isto é, pelo clero). Por isso, ela teve de aderir a uma confissão evangélica para poder “ouvir a palavra de Deus”. Mas a opção teve um custo alto, que foi ter de esconder no armário a imagem de Maria, apesar de sua devoção. Não foi à toa a menção a essa imagem, de especial devoção do papa, que fez questão de incluir uma passagem por Aparecida, não prevista por seu antecessor. O lugar de Maria, como sua imagem, são pontos de alto poder explosivo nas relações entre católicos e protestantes.
            Qual será o teor das mudanças anunciadas pelo papa Francisco, é coisa impossível de se saber, por enquanto. Os articulistas da imprensa brasileira foram unânimes em atribuir efetividade nas mudanças promovidas pelo novo papa na Igreja Católica. Em geral, falou-se das reformas internas na burocracia vaticana, que tem sido alvo de fortes críticas, especialmente em matéria de práticas financeiras e sexuais. Francisco parece disposto a eliminar as razões para tais críticas, mediante a adoção, pelo Banco do Vaticano, de padrões bancários vigentes na Itália e em outros países, de modo a evitar a lavagem de dinheiro. Parece disposto, também, a evitar o prosseguimento da proteção que a Igreja tem dado a padres, bispos e cardeais pedófilos. Ele chegou a dizer que, além de pecado, a pedofilia é um crime, portanto punível pelo Estado, algo inédito na linguagem vaticana. Em matéria doutrinária, todavia, nada foi dito que sugerisse grandes mudanças. Sobre o lugar da mulher na Igreja, ele apenas afirmou que é grande, mas nada de ordenação delas no sacerdócio, isso já estaria resolvido para sempre. Sobre os homossexuais, ele admitiu que a Igreja deve acolhê-los, se buscarem Deus, mas nada de apoiar suas práticas. Sobre os divorciados, reiterou que devem ser acolhidos e até receberem sacramentos, mas nunca se contraírem outro matrimônio.
            O que significam a linguagem simples, o calor humano, o despojamento do ouro e dos confortos vaticanos? Relutando em fazer coro com os articulistas da mídia brasileira, Stéphanie Le Bars publicou artigo em Le Monde (23/7/2013), intitulado “Os primeiros meses do papa Francisco: mudança de estilo ou verdadeira revolução?” A autora não tem dúvidas: ele é revolucionário diante de numerosas práticas vaticanas, mas sua doutrina geral é a mesma de seus antecessores, em matéria de moral sexual, celibato dos padres, do papel da mulher, de ética e bioética. Ela lembra que o papa é favorável a um “estatuto jurídico do embrião”, como certos parlamentares pretendem transformar em lei no Brasil. O artigo transcreve depoimento do cardeal alemão Walter Kasper, que disse ter Francisco mudado a maneira de ser papa, mas não mudará os conteúdos. No entanto, a articulista argumentou que essa  mudança de estilo é ameaçadora para muita gente na burocracia vaticana, de modo que uma oposição interna já se mobiliza para atrapalhar suas atividades. É justamente para se defender dela que se diz que mais ou tanto quanto o reforço do catolicismo no Brasil, o papa voltou para Roma politicamente fortalecido pelo apoio ostensivo de milhões de pessoas. Fazendo seu próprio balanço, Bruno Bimbi foi taxativo: Francisco é Bargoglio. (O Globo, 3/8/2013, Caderno Prosa e Verso, p. 4) Esse militante pelo casamento homoafetivo na Argentina lembra a trajetória política do cardeal Bargoglio contra aquela conquista social. “Ele não é um intelectual alemão, mas um político argentino, acostumado a almoçar com políticos e jantar com jornalistas e a fazer muito lobby, embora tenha condenado o fantasioso ‘lobby gay’.” (Idem, ibidem) Antes de entrar para a Companhia de Jesus, Bargoglio participou da Guarda de Ferro, organização de direita do peronismo. Por essa razão e por seus gestos populistas, ele tem sido apontado, na Argentina, como o primeiro papa peronista.

            Desconversar diante dos temas mais candentes que opõem o catolicismo e as políticas públicas, de um lado; de outro, pedir para se “pôr mais água no feijão” e baixar os vidros do papa-móvel terão sido sinais de um bem sucedido esforço do populismo sul-americano na salvação de uma instituição religiosa em crise? Se esse estilo se mantiver e se consolidar, a laicidade do Estado terá de se haver com um adversário novo: ao invés de sisudos cardeais ou raivosos pastores, o Estado será interpelado também por eloquentes líderes religiosos de massa ao estilo do que a política brasileira conhece em todos os quadrantes: de um Jânio Quadro à direita até um Leonel Brizola à esquerda.