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02 abril 2024

Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?

No dia 9 de Arquimedes de 170 (2.4.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão abordamos um tema um pouco diferente, mais a título de esclarecimento que de reflexão: quem são os republicanos e os democratas dos Estados Unidos?

Antes do sermão, fizemos duas exortações: sejamos altruístas! E façamos as orações positivas!

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/CvuES) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/NSvMW). O sermão começou aos 46 min 50 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.

*   *   *


Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA? 

-        O tema da prédica desta semana é “quem são os democratas e os republicanos dos EUA?”

o   Naturalmente, surge aí a pergunta: por que esse tema, tão específico e tão fora do habitual das prédicas?

o   Os motivos são bem simples e bem claros:

§  Por um lado, as clivagens da política interna dos EUA têm sido cada vez mais importadas para o Brasil, afetando cada vez mais a nossa própria política: basta considerarmos o conservadorismo arquirreacionário evangélico e trumpista, à direita, e o agressivo particularismo e exclusivismo identitário, à esquerda

§  Por outro lado, os sentidos bastante específicos que assumem os termos “democrata” e “republicano” nos EUA (sentidos que têm sido importados para o Brasil) influenciam a maneira como os entendemos aqui no Brasil e, portanto, distorcem e dificultam a maneira como nós, positivistas, entendemo-los

-        Antes de passarmos ao tema deste sermão, convém revermos dois pares de conceitos: por um lado, (1) direita/esquerda e, por outro lado, (2) democracia/republicanismo para o Positivismo

-        Sobre direita e esquerda:

o   Os sentidos desses dois conceitos variaram (e variam) muito ao longo do tempo

o   Esses dois conceitos surgiram na Revolução Francesa, na fase da Assembléia Nacional (1789-1792), em que os favoráveis ao fim do feudalismo e dos privilégios sentavam-se à esquerda no alto da sala de reuniões e os defensores dos privilégios sentavam-se à direita embaixo (a sala do plenário da Assembléia era um anfiteatro)

§  Assim, inicialmente a noção política de “progresso” foi associada à noção espacial da esquerda; as noções de “conservadorismo” e/ou de defesa da “ordem (antiga)” foi associada à noção espacial da direita

§  Esse sentido mais ou menos atravessou o século XIX

§  Vale notar que o progressivismo foi associado, ao longo do século XIX, também ao republicanismo e/ou ao “socialismo”

o   Após a Revolução Russa (1917), e ainda mais com a Guerra Fria (1947-1991), a esquerda passou a ser vinculada ao marxismo e, de modo mais específico, ao comunismo/sovietismo; a partir disso e em contraposição complementar, a direita associou-se a diversas oposições: conservadorismo, “ordem”, liberdade, liberalismo, livre mercado, autoritarismos de direita e até Ocidente e ocidental

o   O fim da Guerra Fria tornou essa oposição confusa e um pouco esvaziada, em que todos os sentidos anteriores mais ou menos se mantêm e confundem-se mutuamente, ao sabor das disputas políticas locais e momentâneas

o   Em 1994 Norberto Bobbio propôs que a esquerda é a favor da igualdade e que a direita é a favor da liberdade

§  A proposta de Bobbio tornou-se famosa, mas apresenta defeitos históricos e empíricos evidentes

§  Em todo caso, a proposta de Bobbio apresenta direita e esquerda como propositoras de conceitos afirmativos e moralmente (mais ou menos) defensáveis

-        Sobre democracia e republicanismo no âmbito do Positivismo:

o   Como sabemos, no Positivismo a república é um dos conceitos políticos mais importantes; na verdade, o conceito fundamental é a sociocracia

§  Tanto a sociocracia quanto, por extensão, a república apresentam o duplo caráter de garantir a ordem social e estimular o progresso social, com as liberdades de consciência, expressão e associação, orientada pela opinião pública positiva, sob o primado da fraternidade universal e, portanto, da paz

o   A república, no Positivismo, tem um duplo caráter:

§  Um negativo, que constitui a ausência de monarquia – ou seja, tanto da instituição monárquica quanto, de maneira mais profunda, do seu fundamento filosófico, que é o absolutismo político de tipo teológico

§  Um positivo, que constitui o primado do bem comum pacífico como regulador de todas as relações sociais e de todas as instituições; em particular, essa república deve ter um caráter social e não meramente político

·         Novamente: as liberdades de consciência, de expressão e de associação, bem como as garantias individuais e o primado da opinião pública positiva, são fundamentos políticos da república

·         O caráter “social” da república significa que ela deve ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, especificamente dos trabalhadores; o caráter “meramente político” conferir-lhe-ia um aspecto burguês, ou burguesocrático, servindo apenas para manter a dominação política e a exploração econômica da burguesia (associada ou não à nobreza) sobre o proletariado

o   A democracia, por outro lado, é um conceito metafísico, criado para contrapor a “soberania popular” à “soberania divina (dos reis)”; em outras palavras, é um conceito crítico, destrutivo, dissolvente, feito sob medida para negar o poder da monarquia e os seus fundamentos filosóficos

§  A soberania popular é absoluta: ela está sempre certa; por isso, ela rejeita discussão; ela impõe-se a todos e despreza preocupações individuais; como se isso não fosse pouco, há a imposição de uma religião civil (naturalmente, um cristianismo); a opção a tudo isso é a prisão e/ou o exílio

§  A soberania popular – teorizada por Rousseau – apresenta, portanto, todas as características da soberania divina dos reis; o que ela faz é transferir para um “povo” indefinido o que antes era atribuído com clareza aos reis

§  De maneira muito confusa há uma certa noção de “bem comum” ou de “interesse social” na soberania popular; entretanto, muito mais claro e mais forte são suas características evidentemente autoritárias (ou melhor, totalitárias)

§  O que atualmente se chama de “democracia” é uma combinação de limitação liberal do poder, afirmação das liberdades públicas e metafísica da soberania popular, a que se somam as eleições periódicas

·         Ou seja: a chamada democracia atual é um nome de qualquer maneira inadequado para regimes políticos incoerentes – em que, ainda assim, considera-se que as liberdades e alguma concepção de bem comum são importantes

-        Passando para democratas e republicanos nos EUA:

o   Considera-se que a independência dos EUA ocorreu em 4 de julho de 1776, em meio à Guerra de Independência (1775-1783)

o   Vale notar que entre 1781 (com redação em 1777) e 1788 os Estados Unidos constituíram-se na forma de uma confederação

§  Essa confederação era regulada pelos “Artigos da Confederação”

§  Embora os Estados Unidos fossem, então, um único país, ele era uma confederação, em que cada estado tinha amplos poderes; não havia um governo nacional, apenas um congresso nacional cujos poderes eram limitados (paz e guerra; moeda; pesos e medidas; comércio exterior)

§  O Presidente do Congresso exercia as funções de chefe do governo

o   Com a promulgação da constituição de 1787, que entrou em vigor em 1788, os Estados Unidos assumiram a atual estrutura política: três poderes (“branches”), Presidente da República com poderes nacionais efetivos, congresso bicameral (Senado para representação estadual, Câmara para representação popular), eleição do presidente em dois níveis (via colégio eleitoral)

§  Essa estrutura política dos EUA conjuga diversos mecanismos refletindo as preocupações do final do século XVIII: um federalismo muito intenso, um grande país (com intenções de ampliar-se cada vez mais), a doutrina metafísica da divisão dos três poderes

§  Essa estrutura foi elaborada tanto para limitar o poder efetivo (em particular do governo nacional) quanto para evitar as paixões populares

o   A partir daí surgiram dois grupos, ou partidos: de um lado, os republicanos de Jefferson e Madison; de outro lado, os federalistas, de Hamilton

§  Esses partidos tinham esse nome mas não eram partidos no sentido atual; eram mais ajuntamentos de políticos com perspectivas próximas

§  Os republicanos de Jefferson também eram chamados de antifederalistas ou antiadministração (ou antigoverno); apesar do seu nome e do nome do outro partido, eles eram a favor do federalismo, isto é, da autonomia dos estados e da limitação do poder do governo central; também temiam as propostas centralizadoras, por vezes mesmo monarquistas, de Hamilton, que consideravam como potencialmente despóticas, aristocratizantes e antirrepublicanas

·         Não é à toa que Jefferson foi o propositor das primeiras dez emendas à constituição dos EUA; essas emendas foram propostas imediatamente após a promulgação da constituição e são consideradas, em seu conjunto, como a “carta de direitos” dos EUA

·         Também vale notar que Jefferson foi um dos grandes promotores do republicanismo como filosofia política e também foi o principal defensor da separação entre igreja e Estado

§  Os federalistas de Hamilton, apesar de seu nome, eram centralizadores (e potencialmente antifederalistas) e defendiam maiores poderes para o governo central e poder de ingerência nos estados subnacionais

·         Hamilton realizou um importante trabalho de fortalecimento do dólar e de criação de condições para o desenvolvimento nacional dos EUA

o   Jefferson foi eleito e reeleito presidente, governando entre 1801 e 1809; a ele sucedeu Madison, que era partidário de Jefferson e que também governou durante dois mandatos (1809-1817); em seguida, também pelo partido republicano de Jefferson, foram eleitos James Monroe (dois mandatos: 1817-1825) e, por fim, John Quincy Adams (1825-1829)

§  Em outras palavras, o partido republicano de Jefferson governou durante cerca de 40 anos; a partir dos anos 1810, viu-se em uma situação de unipartidarismo, na medida em que o partido federalista de Madison dissolveu-se àquela época

§  Ao longo da década de 1820, o partido republicano de Jefferson acabou perdendo sua identidade, perdendo seus valores e tornando-se na prática um partido catch-all, que visava apenas à busca do poder; com isso, acabou desfazendo-se

o   Em 1828 constituiu-se o partido democrata, sob Andrew Jackson, para que ele disputasse a presidência da república; ele foi de fato eleito e governou de 1829 a 1837

§  A plataforma de Andrew Jackson podia ser considerada “populista”: apelava para o homem comum (de modo geral agricultor), era contra o Estado forte e contra as elites (que ele via como corruptas e autocentradas); também defendia o protecionismo econômico nos EUA – e, isto é central, era contra a abolição da escravidão (e a favor da remoção forçada dos índios)

§  O partido democrata de Jackson, em termos de continuidade institucional, é o mesmo que existe atualmente

§  Ele manteve-se no poder entre 1829 e 1861

o   Em 1854 foi fundado o atual partido republicano, a partir da reunião de antigos adversários dos democratas com democratas contrários à escravidão; ele defendia então o republicanismo, o fim da expansão territorial da escravidão e o fim da escravidão em termos gerais

§  O primeiro presidente republicano foi Lincoln (1861-1865); dessa época até 1932 quase todos os presidentes dos EUA foram republicanos (as exceções foram Grover Cleveland e Woodrow Wilson)

o   O partido republicano, no século XIX, tinha sua base no norte e no oeste dos Estados Unidos; de modo geral eram contrários à escravidão (a postura de Lincoln a respeito acabou levando à guerra civil); em oposição, o partido democrata tinha sua base no sul dos Estados Unidos e eram favoráveis à escravidão e, depois da guerra civil, contrários à integração racial

-        Em 1929 iniciou-se a grande crise econômica e social; os republicanos então no poder (Hoover) adotaram uma política econômica conservadora, que aprofundou a crise; contra essa política lançou-se o democrata Franklin Roosevelt, que adotou uma plataforma de centro-esquerda, marcada pelo forte intervencionismo econômico

o   Governando durante quatro mandatos (1933-1945), Roosevelt lançou o New Deal (“Novo Acordo”, ou “Nova Negociação”), que seria um esforço de Estado de bem-estar social nos EUA

o   Em 1942 Roosevelt levou os EUA a participarem da II Guerra Mundial e a promover um novo internacionalismo (via ONU); após 1945, já sob Truman, os EUA surgiram como os grandes vencedores da guerra, com a bomba atômica, líderes do Ocidente e em disputa com a União Soviética

o   Tanto o New Deal quanto a guerra alteraram profundamente a política dos EUA, estabelecendo um padrão que foi seguido nas próximas décadas tanto por democratas quanto pelos republicanos: atuação do Estado na economia e preocupações sociais, internacionalismo, ativismo político-militar no exterior

§  Esse padrão foi seguido por democratas e republicanos; os democratas eram mais sociais e mais inclusivos internamente, mas mais agressivos externamente; os republicanos eram menos sociais e inclusivos internamente, mas mais negociadores externamente

o   O padrão surgido entre 1932 e 1945 foi modificado em 1981, quando o republicano Ronald Reagan adotou um novo discurso político-social, desprezando o sentido social do New Deal e defendendo a correção moral do individualismo e do egoísmo, no neoliberalismo; na política externa, ele adotou ações externas bastantes agressivas contra o bloco soviético

§  O novo padrão individualista e neoliberal de Reagan é o que vige atualmente

o   O democrata Bill Clinton manteve um internacionalismo mais ou menos pacifista e integrador; já em termos econômicos ele promoveu a desregulamentação da economia, em particular do mercado financeiro, estimulando a especulação e os ataques às economias nacionais

§  Na década de 1990 vários elementos juntaram-se: esvaziamento dos movimentos sociais classistas (devido ao fim da Guerra Fria); fim do movimento dos direitos civis dos anos 1960 (devido à vitória desse movimento); aprofundamento do caráter individualista próprio aos EUA e reforçado pelo neoliberalismo de Reagan; moda irracionalista pós-moderna: tudo isso se juntou na esquerda dos EUA, que passou a professar com intensidade o particularismo exclusivista e excludente do identitarismo

o   O republicano George W. Bush promoveu um internacionalismo agressivo e unilateral, a que deu fortes elementos nacionalistas e teológicos

§  Os traços do nacionalismo e da teologia política eram profundamente estranhos à tradição dos EUA desde a década de 1930

§  Esses dois traços deitaram raízes e encontraram eco nas décadas seguintes

o   Ao longo das décadas de 2000 e 2010 alguns outros elementos surgiram ou ressurgiram: o tradicionalismo reacionário anti-intelectual, antiprogressista e, cabe notar, (paradoxalmente) antiocidental; o desenvolvimento das redes sociais, devido à expansão da internet, e o estímulo da cultura do ódio que é próprio ao modelo de negócios do Vale do Silício; a percepção dos limites e dos problemas da globalização e do neoliberalismo, gerando deslocamento de empregos, o empobrecimento de cidades, estados e países e a crise de 2008; a retomada do caráter imperial da Rússia e seu antiocidentalismo militante

§  Tudo isso convergiu para clivagens da sociedade estadunidense; essas clivagens têm-se aprofundado cada vez mais, sem sinal de que possam reverter-se no curto e no médio prazo

§  Tudo isso também convergiu para a vitória de um político agressivamente “populista”, nacionalista, isolacionista, excludente, xenófobo, reacionário, estimulador da teologia política – o republicano outsider Donald Trump

§  Trump afirma-se com clareza e orgulho que é “conservador” e de “direita”

·         Trump é tão agressivo e tão extremos em suas posturas que até mesmo George W. Bush considera-o radical

o   Apesar de Trump, os democratas não deixaram de lado o identitarismo e mesmo uma postura agressiva internacionalmente (como no caso de Hillary Clinton); mas, antes, com Barack Obama, e depois, com Joe Biden, assumiram uma postura de apoio aos trabalhadores dos EUA e de internacionalismo – embora sem o apelo direto junto às massas que Trump apresenta

-        Em suma:

o   Falar de democratas e republicanos dos EUA é importante porque essa é uma clivagem cada vez mais profunda nesse país e que temos cada vez mais importado para o Brasil

o   A dicotomia direita-esquerda mudou de sentido ao longo do tempo; não há um sentido único para ela; apesar disso, forçando um pouco os raciocínios filosóficos e históricos, pode-se dizer que a esquerda tem maiores preocupações sociais e com o progresso, enquanto a direita preocupa-se mais com a ordem

o   Os sentido dos democratas e dos republicanos dos EUA mudou ao longo do tempo, em que as posições direita-esquerda variaram (ou nem seriam aplicáveis)

§  A vinculação do partido democrata com a esquerda começou nos anos 1930, com Franklin Roosevelt

§  A vinculação explícita do partido republicano com a direita começou, ou foi muito reforçada, nos anos 1980, com Ronald Reagan

§  Trump em particular tem conseguido forçar cada vez mais o partido republicano e a direita dos EUA no sentido do exclusivismo, do particularismo, da teologia cristã, do isolacionismo, de um populismo “branco”

06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

08 fevereiro 2016

Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Vários anos atrás - em 2005, para ser mais preciso -, após ter estudado as relações ocorridas entre Brasil e Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX e, portanto, após ter estudado a atuação internacional dos EUA, decidi redigir um pequeno texto sobre as percepções havidas sobre esse país.

Minhas reflexões foram publicadas na extinta revista eletrônica Autor (São Paulo, v. 5, n. 50, 2005). Como foi escrito há mais de dez anos, é natural que uma coisa ou outra fosse alterada, caso escrito hoje (fevereiro de 2016), tanto em termos de estilo quanto de conteúdo. 

Ainda assim, ele mantém-se atual em sua maior parte, se não em sua totalidade; dessa forma, creio que vale a pena publicar novamente estes meus comentários, que trago a público neste blogue sem alterações (exceto no que se refere ao meu currículo acadêmico, presente na nota n. 1, abaixo).

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Problemas de (má) percepção e de valores a respeito dos Estados Unidos no mundo

Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

I. INTRODUÇÃO

Falar sobre os Estados Unidos atualmente é despertar paixões. Na verdade, desde há um bom tempo – talvez desde finais do século XIX, no caso do Brasil – esse tema é apaixonante e o debate, na medida em que há algum, é apaixonado. Há assuntos que provocam vivas reações de maneira “unívoca”: as pesquisas com células-tronco, nos dias atuais, seriam um exemplo disso, pois a clivagem entre favoráveis e contrários baseia-se em questões de pesquisa médica (favoráveis) ou em um certo respeito à vida (contrários); além disso, as discussões não são passíveis de outras posições que não as favoráveis e as contrárias.

Relativamente aos Estados Unidos, a situação é diversa, pois as clivagens são inúmeras, assim como as posições e mesmo os graus em que cada posição é possível. Alguém pode radicalmente ser favorável a eles porque os considera a terra da liberdade ou o bastião do anticomunismo ou a terra do individualismo ou mesmo porque o idealismo (e as versões religiosas originárias desse traço de comportamento, o moralismo[2] e o messianismo) sempre teve grande importância em sua vida, interna ou externa. Quem é contrário a esse país pode sê-lo pelos mesmos motivos porque alguém lhe é favorável, isto é, porque lá há a prevalência do material no lugar do espiritual, porque lá se é individualista em detrimento do coletivismo ou de um “socialismo” ou porque lá a religião assume importância exagerada na vida social e política. É claro que há quem os condene por serem a única superpotência mundial, adotando as condutas adequadas à manutenção de tal condição, ou por adotarem um comportamento mais prepotente, desconsiderando fóruns multilaterais em função da certeza própria aos iluminados. Por fim, há a possibilidade de fórmulas intermediárias, em termos substantivos (“isto é bom, aquilo é ruim”) e em termos metodológicos (“prefiro registrar os fatos”). Os métodos analíticos também variam: há quem prefira uma abordagem estruturalista, outros preferem o materialismo, outros são mais simpáticos a um certo “conjunturalismo” e assim por diante.

O que comentei é o óbvio, mais ou menos sabido por todos. Todavia, em diversas ocasiões é necessário dizer-se o óbvio para poder-se ir adiante – e o “ir adiante” no presente caso significa apresentar algumas questões relacionadas aos Estados Unidos com um mínimo de independência, sem constrangimentos político-“ideológicos”. Ou melhor: não tanto ao país em si como em relação à percepção que dele vários têm.

Os Estados Unidos despertam paixões. As paixões, em si, não nos interessam nem são propriamente problemáticas: todos sabemos como a política (e a própria vida) é feita de paixões, algumas maiores, outras menores. O que é problemático no presente caso é que as paixões relativas aos Estados Unidos, muitas justificadas, outras nem tanto, freqüentemente atrapalham análises minimamente cuidadosas de sua posição no mundo, seja a favor, seja contra. Na verdade, indo diretamente ao ponto, o fato é que a quantidade de bobagens que se repete a respeito dos Estados Unidos é enorme e, na maioria das vezes, ao invés de buscar-se um conhecimento positivo a respeito da realidade desse país, repete-se esse pseudoconhecimento, considerado correto porque legitimado pelos preconceitos políticos correntes, de direita ou, mais facilmente, de esquerda.

II. DOIS AUTORES FALAM DOS EUA: ARON E HOBSBAWM

Uma comparação entre abordagens pode ilustrar com clareza meu ponto. Por motivos específicos li recentemente dois livros de história do século XX, um escrito no já distante ano de 1973, de Raymond Aron (1975): A república imperial – os Estados Unidos no pós-guerra (1945-1970); o outro de Eric Hobsbawm (1999), escrito em 1993: A Era dos Extremos – o breve século XX (1914-1991). A posição de Aron a respeito era muito clara ao notar que a potência tem um projeto de poder e adota os meios considerados em cada momento adequados à consecução de seus objetivos – e também sem deixar de notar que, no contexto da Guerra Fria[3], tendo que escolher entre o comunismo e as democracias liberais, a opção era clara: a aceitação da liderança norte-americana era a única opção crível –, considerando, de qualquer forma, que a história humana, em que pesem as mudanças por que passa cada sociedade, é muito a disputa entre os homens por poder, honra e glória (como diriam Maquiavel e Hobbes). 

Aron era um francês que não escondia sua viva antipatia pelo comunismo e pelo perigo que a União Soviética representava para a Europa e que, ao mesmo tempo, percebia nos Estados Unidos inúmeros valores respeitáveis e outros tantos condenáveis ou desprezíveis; em outras palavras, reconhecendo a natureza humana e a natureza das relações internacionais, fazia sua escolha, sem deixar de indicar as condutas francamente condenáveis da parte dos Estados Unidos – mas também sem fazer a apologia desses mesmos comportamentos. 

A questão aqui, portanto, é notar que Aron apresentava a atuação norte-americana no mundo, tendo claro que vários de seus comportamentos eram – como são – condenáveis, ao mesmo tempo em que outros tantos não o eram (como não o são); além disso, entre duas potências que adota(va)m comportamentos semelhantes – devido ao simples fato de serem potências –, o autor preferia aquela que defendia valores mais próximos aos seus próprios, sem ingenuidades. A questão, assim, era: sem ingenuidades em relação aos norte-americanos nem em relação à (então existente) União Soviética, qual das duas potências é a preferível, qual é a que perfilha valores mais próximos aos nossos? A resposta a essa pergunta por certo que influenciou o livro, mas parece-me que o tipo de raciocínio dessa pergunta era o que constituía o fundamento metodológico do livro e, portanto, a postura intelectual do autor.

Hobsbawm, ao contrário, põe-se em uma posição claramente contrária aos Estados Unidos; lendo, por exemplo, o capítulo 8 de seu livro (“Guerra Fria”), claramente o autor considera os Estados Unidos os causadores da Guerra Fria e os beligerantes que insistiam em opor-se à União Soviética mesmo quando não eram provocados (e jamais teriam sido provocados!) por uma União Soviética que, acima de tudo, era pacífica e desejava a paz e a calma para construção de seu “socialismo em um só país”[4].

O contraste entre ambos os autores não poderia ser maior. Aceitando a sinceridade dos formuladores da política externa dos Estados Unidos, percebe em suas ações hesitações e dúvidas, contradições e tensões – e, também, hipocrisia – Aron reconhecia a diversidade de sistemas sociais e políticos, a diversidade de interesses e histórias mas afirmava, subjacente à exposição, a importância de um defensor da Europa e dos valores europeus (comungados, em maior ou menor proporção, pelos Estados Unidos). Poder-se-ia dizer que ele defendia os Estados Unidos porque era favorável ao capitalismo, mas tal afirmação não faria sentido para um intelectual do tipo de Aron, que não tinha uma posição simples (ou simplista) a respeito de tais temas. Hobsbawm, ao contrário, é muito claro em seus juízos sobre os Estados Unidos e a União Soviética mas não evidencia suas preferências filosóficas primeiras: rejeição do capitalismo (e do Estado que o representa, defende e fomenta), simpatia pela União Soviética (que o fez suavizar notável e espantosamente o autoritarismo soviético posterior a Stálin) e adesão ao marxismo, isto é, ao materialismo histórico, à luta de classes e aos interesses inconciliáveis que influenciam (quando não deformam) o conhecimento conforme a classe social de quem fala.

Nada disso é novidade para nenhum leitor mas, como diria Nelson Rodrigues, esse é o óbvio ululante: ninguém o vê – ou ninguém se “lembra” de vê-lo. À parte as condições do mercado editorial brasileiro, as referências editoriais de ambos os livros servem como um índice precioso desse “esquecimento ululante”: enquanto o livro de Aron – que é extremamente informativo, muito mais que opinativo – teve apenas uma edição em 1975, o livro de Hobsbawm já está pelo menos na décima edição, menos de dez anos após seus lançamento no Brasil. Não é à toa que o discurso sobre os Estados Unidos pode ser tão enviesado...

III. PROBLEMAS DE (MÁ) PERCEPÇÃO E DE VALORES

Abstraindo o debate, parece-me que as dificuldades para falar de (ou, antes, para pensar) os EUA residem em três ou quatro pontos principais. Em primeiro lugar, sua atuação não é unívoca. Eles têm um projeto nacional, que é mais ou menos seguido; após a II Guerra Mundial, podendo escolher entre manterem-se dominantes no mundo ou recolherem-se em seu isolacionismo prévio, preferiram a atuação global, em uma posição em que se mantêm até os dias atuais e cada vez mais, adotando as medidas que, certas ou erradas, são conforme o projeto que fazem para si e para o mundo. Em segundo lugar, sua atuação é diferente conforme a área geográfica a que se refere: por exemplo, o isolacionismo por eles praticado após a I Guerra Mundial referia-se à Europa, mas de maneira alguma à América Latina, onde, desde o início do século XX até princípios dos anos 1930, um grande ciclo de intervencionismo militar e econômico teve lugar.

Em terceiro lugar, o juízo que deles fazemos é marcado pela política atual, isto é, mesmo não sendo possível julgar a política desenvolvida por um país sem se recuar no tempo para considerar também os movimentos anteriores, julga-se o antes pelo atual – e como o atual nunca é bom, tudo sempre foi e é ruim. O erro de anacronismo fica patente aí, embora não se faça questão, de modo geral, de corrigi-lo. Last but not the least, as preferências políticas – ou, se se preferir, as preferências “ideológicas” – de quem fala têm que ser levadas em conta: notadamente a esquerda, embora também a direita em algumas situações[5], é contrária aos Estados Unidos pelo duplo motivo de ser um país capitalista – talvez o país capitalista por excelência, de onde Max Weber tirou elementos empíricos para sua famosa obra sobre o “espírito” do capitalismo – e de ter enfrentado (com sucesso) a União Soviética (o grande bastião do comunismo, afinal de contas) durante a Guerra Fria. Freqüentemente os juízos a respeito dos Estados Unidos misturam elementos desses quatro fatores, que separei por motivos de ordenamento lógico; se se prestar atenção, os quatro motivos foram agrupados em dois grupos de dois: o primeiro grupo refere-se a questões de fato, a problemas históricos e sociológicos; o segundo grupo vincula-se a questões intelectuais, no sentido de que se referem ao mundo das idéias, sejam elas metodológicas, sejam de preferências pessoais.

III.1. Potências boas?

Façamos uma revisão de cada um desses motivos. Em relação ao primeiro: uma grande potência pode não lançar mão dos instrumentos necessários para manter-se como uma grande potência? Aliás, existem “boas” grandes potências? Subjaz aqui a pretensão de que, fôra outro o país dominante, suas ações seriam diversas das adotadas pela potência atualmente dominante. Mas será isso fato ou será mero wishful thinking? À parte o problema metodológico de que não se pode pesquisar o que não aconteceu – embora seja um recurso comum ao tratar-se de problemas políticos que estão na ordem do dia –, o fato é que, historicamente, as grandes potências, se desejam manter-se como grandes ou, pelo menos, como potências, adotam os comportamentos que julgam necessários independentemente de considerações “éticas” ou morais. Em termos acadêmicos isso nos leva à discussão clássica de se é possível existir, de alguma forma, uma ordem internacional mais justa ou menos predatória, em que as dignidades nacionais não tenham que sucumbir aos desígnios de países mais fortes. Pode-se lamentar, sem dúvida alguma, esse estado de coisas, mas pelo menos desde a Guerra do Peloponeso até o momento, o discurso dos atenienses aos mélios, nesse sentido, permanece mais ou menos verdadeiro.

Essas observações levam-nos a algumas outras. A agenda internacional implementada pelos Estados Unidos desde o final da II Guerra Mundial – desejos de dominação à parte – é “boa” ou “ruim”? A contenção do comunismo e o combate à União Soviética; a instituição de uma ordem econômica tendencialmente liberal, em que é (ou será) possível uma integração das várias economias nacionais em um único sistema mundial; a criação de uma organização que congrega todos, ou quase todos, os países do mundo, capaz de coordenar ações globais de interesse da humanidade: isso não é pouco, não é desprezível e decididamente não é ruim. “Um outro mundo é possível”: pois bem, qual? O comunista (ou o socialista, tanto faz)? Projetos de ordenamento mundial têm que ser levados a cabo por grandes potências e, bem ou mal, creio que o atual projeto[6] é melhor que os seus pretensos rivais.

Ora, os Estados Unidos não são santos nem são ingênuos. Embora o idealismo, não raras vezes eivado de elementos teológicos, seja uma característica de sua política externa, a questão que se apresenta é a seguinte: qual outro país poderia sucedê-lo para o ordenamento mundial? Em minhas preferências pessoais por países, sou mais pela França que pelos Estados Unidos, mas a verdade é que, infelizmente, a corrida colonial que os europeus levaram a cabo no século XIX foi um projeto basicamente francês, secundado por ingleses, belgas, holandeses, alemães e italianos. Talvez a Rússia pudesse ser um bom país para conduzir o ordenamento mundial? Isso está extremamente longe de ser verdade, ao menos para as tradições de racionalismo e liberdade que o Ocidente constituiu ao longo dos séculos. O mesmo aplica-se à China.

Alternativamente, cabe com franqueza a pergunta: caso nós, brasileiros, estivéssemos no lugar dos estadunidenses, será que agiríamos de maneira diferente? Duvido muito, especialmente porque o Brasil gosta de pensar que é uma “grande potência” (“país do futuro”, “de dimensões continentais” etc.) e, é claro, o samba e o carnaval não são propriamente instrumentos de convencimento político. Em suma: ao acusarmos os Estados Unidos de perceberem o mundo de sua própria forma, de serem uma grande potência e de usarem os instrumentos necessários para tanto, somos indulgentes com nós mesmos, como se, caso estivéssemos no lugar deles, agíssemos de maneira diversa, com maior “generosidade”, “magnanimidade” ou qualidades semelhantes.

Se afirmarem, de qualquer forma, que se deseja uma ordem multipolar, em que não haja a tirania de um país sobre os demais, isso será bem mais aceitável; na verdade, isso me parece desejável. Por outro lado, que não se tenha ilusões: a política internacional é oligárquica – são poucos os que têm efetivamente poder – e, acima de tudo, a arquitetura mundial baseada no projeto e nas instituições que os Estados Unidos constituíram após a II Guerra Mundial ainda é a melhor solução.

III.2. Atuação diversa conforme a região

O segundo motivo de rejeição aos norte-americanos não é sofístico ou resultado de miopia política e sociológica, como o primeiro. Conforme a área geográfica do mundo, o comportamento norte-americano varia bastante, indo da preocupação generosa (interessada, se se desejar) à má vontade ou, simplesmente, à completa ignorância. Podemos facilmente pensar na África, tantas vezes deixada de lado nas questões mundiais, mas os exemplos da Europa e da América Latina podem ilustrar melhor o argumento. Enquanto norte-americanos e europeus mantiveram uma relação de grande proximidade após a II Guerra Mundial, com o guarda-chuva nuclear e econômico estadunidense protegendo a constituição da comunidade econômica européia, a América Latina ficou largada à própria sorte, sem estímulos econômicos para o crescimento, apesar da propalada “amizade” entre o subcontinente e seu vizinho ao Norte. Aliás, mesmo o isolacionismo norte-americano prévio à II Guerra Mundial era apenas em relação à Europa, tendo sofrido a América Latina cerca de 35 anos de intervencionismo e invasões militares, entre 1898 e 1934, com o objetivo de manter os “valores da civilização” e a segurança dos investimentos norte-americanos na região[7].

Como latino-americano não posso deixar de reconhecer: a ação dos Estados Unidos em inúmeros momentos foi extremamente predatória sobre nossa região, justificando uma reserva em relação ao país do Norte que já vem desde Bolívar. Creio que não há necessidade de estender-me sobre o assunto; os exemplos poderiam multiplicar-se enormemente, juntamente com a indignação; quando os nacionalistas latino-americanos denunciam esse comportamento norte-americano, estão corretíssimos[8]. Apenas é necessário perceber que, embora o nacionalismo freqüentemente possa vir acompanhado pelo marxismo, uma e outra coisa são diferentes e sua mistura (ou, mais adequadamente, confusão), embora possível no discurso político do dia-a-dia, não o é na prática científica.

De qualquer maneira, é importante notar que o padrão de intervencionismo não foi constante e que sofreu alterações importantes ao longo da história: ao longo do século XIX não houve intervenções (especialmente na América do Sul), a Política da Boa Vizinhança, de Franklin D. Roosevelt, foi uma reversão nas invasões e, por fim, a Aliança para o Progresso foi uma tentativa de conquistar a boa vontade latino-americana em um período em que o desenvolvimentismo era a ordem do dia aqui[9].

III.3. Anacronismo na análise

As duas objeções examinadas acima referem-se a questões de fato: como é que as grandes potências atuam no mundo? Mais particularmente, como é que os Estados Unidos comportaram-se em relação à América Latina? Sem dúvida que as interpretações possíveis variam muito, mas qualquer discussão sobre o assunto, nesses casos, tem que se referir a questões de fato e não a formulações teóricas mais ou menos gerais e mais ou menos separadas da realidade. Os outros dois motivos referem-se a questões ou de ordem metodológica (como encarar a realidade?) ou de ordem “ideológica” (qual o sistema social que se prefere?). Vejamos agora o problema metodológico.

É um erro comum de percepção, embora básico e até grosseiro, julgar o passado com os critérios de hoje. É claro que não me refiro a orientar a pesquisa histórica pelas preocupações atuais; penso, mais precisamente, no erro de desconsiderar os fatos anteriores e suas características pela aplicação mecânica dos nossos critérios ao passado; é estar imbuído de um espírito de absoluto e de negar a necessária relatividade para a compreensão do mundo (natural e humano).

Em relação às disputas políticas, passadas para a academia no assunto que nos interessa, esse erro consiste em atribuir ao passado as preocupações do presente, pura e simplesmente julgando o que se fez antes pelo que se faz atualmente (ou que se pensa fazer atualmente). É claro que, geralmente, o que acontece é que se põe na “lata do lixo da história” aquilo de que não se gosta. Assim, no caso que nos interessa, porque atualmente George W. Bush é o Presidente dos Estados Unidos e porque ele é reconhecidamente belicista e simpático a causas no mínimo “discutíveis”, então nada na política externa dos Estados Unidos presta ou prestou e eles sempre foram detestáveis e desprezíveis. Embora em termos metodológicos esse tipo de afirmação apresente problemas complicadíssimos, o fato é que, em termos políticos mais diretos, essa frase é simplesmente um casuísmo enorme.

III.4. Disputas político-ideológicas

A última fonte de percepções erradas sobre os Estados Unidos reside nas posições políticas de quem fala. Coloquei-a em último lugar não porque a julgo desimportante, mas porque, parece-me, ela é a principal, a fonte de todas as demais, na medida em que justifica ou acoberta todos os outros erros. Bem percebidas as coisas, ao longo de minha argumentação prévia apresentei vários elementos que sugeriam essas disputas; assim, aqui apenas explicitarei e consolidarei esses argumentos.

A posição dos Estados Unidos no mundo, desde o término da II Guerra Mundial e a partir da Guerra Fria, em 1947, foi de defensor do capitalismo. Pessoalmente não levo muito a sério o conceito de “capitalismo” – pois ele cumpre uma função teórica muito específica e muito clara no pensamento marxista, condenando por definição e à partida a sociedade contemporânea –, mas é assim que geralmente se percebe sua atuação no mundo e é por esse metro que se mede seu comportamento[10]. Ora, esse simples motivo condena-os inapelavelmente ao mais profundo abismo infernal, na medida em que, como o capitalismo é ruim, seus defensores devem ser ainda piores. Considerações a respeito das instituições multilaterais (políticas e econômicas), que os EUA criaram a partir de 1945; da ampla liberdade de pensamento e de expressão; da vitalidade de sua economia; de sua estabilidade política; da subordinação da política à moral – nada disso é percebido. Ao mesmo tempo, uma admiração velada pelo comunismo sempre está presente, embora não se escreva nem uma linha a respeito de como o socialismo dito “real” funcionou ou funciona (nos casos chinês, cubano e norte-coreano): nada da enorme literatura – filosófica, científica e jornalística – a respeito do que era (e é) o comunismo aparece nesses debates, apenas a mesma cantilena condenando o capitalismo... é claro que esses autores que condenam o capitalismo vivem em sociedades que se beneficiaram e beneficiam-se enormemente do fato de serem capitalistas.

Importa insistir: a partir da oposição entre o capitalismo (sempre claramente condenado) e o comunismo (ou socialismo ou “um outro mundo possível”, sempre admirado de maneira subjacente), tudo é possível, pois tudo é válido na luta do bem contra o mal, na luta pela redenção humana. Há claramente uma confusão entre os critérios políticos e os intelectuais, em que os últimos subordinam-se, de maneira vil, aos primeiros: a inteligência torna-se um simples instrumento da ação prática, não se concedendo papel algum à investigação concreta da realidade que possa, de alguma forma, fugir dos esquemas pré-determinados de pensamento. Em outras palavras, a razão é submetida pela fé: não é à toa que o marxismo e o comunismo são freqüentemente comparados a uma nova teologia[11].

Reforço aqui a observação apresentada na seção II: a literatura “crítica” aos Estados Unidos, procedente da esquerda (isto é, marxista), é muitíssimo maior que a “crítica” não-marxista. Tem-se a ilusão, dessa forma, que ser contrário aos Estados Unidos é ser de esquerda ou, inversamente, que reconhecer alguns méritos nos EUA é o mesmo que justificar suas atitudes e o capitalismo.

Na verdade, há apenas uma atualização de discursos longamente repetidos: assim como no século XIX e início do século XX dizia-se que era a Inglaterra que não prestava porque era o país bastião do capitalismo – independentemente dos méritos de sua sociedade –, agora o discurso refere-se aos EUA. Lembrar que, por exemplo, os Estados Unidos e a Inglaterra foram países “bons” entre 1942 e 1946 porque eram aliados da União Soviética na “luta antifascista” também não é permitido[12] – pois, afinal, “desde sempre” e por definição os países capitalistas não prestam.

Embora se possa afirmar que a Guerra Fria já acabou e que, portanto, não fazem mais sentido as referências à União Soviética, o fato é que o discurso anti-americano e a perspectiva adotada de modo geral pela esquerda são caracteristicamente da Guerra Fria, com todos os subterfúgios e técnicas adotados no período e, a bem da verdade, desde muito antes. Para comprovar-se essa afirmação, basta ler os textos de autores do século XIX, do início do século XX, da I Guerra Mundial, do período entre as guerras, da II Guerra Mundial, da Guerra Fria e os mais recentes: são todos variações sobre o mesmo tema; os mesmíssimos argumentos, com diferenças táticas de nomes e expressões. A unidade de pensamento e de discurso, aliás, no que se refere à condenação ao capitalismo e, por extensão, aos Estados Unidos, choca quem ouve falar do tal do tão decantado “discurso único” neoliberal, tão acremente condenado pela esquerda.

IV. FINAL DO TEXTO MAS NÃO DA DISCUSSÃO

Retomo no final do artigo a observação inicial: falar sobre os Estados Unidos é provocar paixões – paixões ainda maiores se for para “defender” esse país. Dessa forma, é um terreno espinhoso, que, apesar de sua importância, exige muito cuidado. A quantidade de notas de rodapé deste pequeno artigo – cuja extensão ultrapassou em muito o que planejara inicialmente – indicam os cuidados de que me cerquei ao escrevê-lo. Claro está de que não se trataram especialmente de cuidados metodológicos, mas de cuidados políticos: como argumentei ao longo do texto, falar dos Estados Unidos parece fácil, pois “todos” falam, sem maiores preocupações com o rigor da fala e permitindo-se os maiores erros do ponto de vista intelectual. O esporte nacional no Brasil é o futebol: a “argumentação” relativa aos EUA aproxima-se, talvez não por acaso, às brigas do torcida, tais as tolices que se repete.

É claro que o debate não acabou – mesmo porque, em se tratando de “debate”, isto é, de troca racional e pacífica de idéias, em que cada parte aceita, sem segundas intenções e sem hipocrisia, a real possibilidade de mudar de opinião no decorrer da argumentação; em se tratando de “debate”, parece que ele mal começou. Indiscutivelmente minha argumentação será mal compreendida ou simplesmente distorcida, aparecendo este texto como “pró-americano”: na verdade, se for para tachar-me de alguma coisa, prefiro pensar que sou “pró-pensamento correto” e “pró-sociedade aberta e democrática”[13]. Como comentei antes, tantas são as tolices que se fala a respeito dos Estados Unidos que é demasiado difícil argumentar racionalmente a respeito deles; ora, dada a influência que esse país exerce no mundo – não apenas em termos econômicos e militares, como também culturais –, não compreender os Estados Unidos é também não compreender a maneira como o mundo organiza-se – com todos os seus prós e contras.

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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (gustavobiscaia@yahoo.com.br) é "pós-doutor" e Doutor em Sociologia Política (UFSC), Mestre em Sociologia (UFPR) e sociólogo da UFPR. Sua dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2004, intitula-se Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento: a Operação Panamericana e a Aliança para o Progresso.

[2] O termo “moralismo” é um termo completamente ambíguo e notavelmente impreciso. No presente caso, adoto-o considerando de maneira proposital essa ambigüidade, dando a entender tanto a preocupação com a moralidade da existência humana quanto um comportamento mais hipócrita, em que os valores morais são instrumentalizados para algum fim, com ou sem adesão a esses valores.

[3] Como indicamos, o livro de Aron foi escrito em 1973, em plena Guerra Fria e, curiosamente, no mesmo ano em que os Estados Unidos abriram mão de sua liderança no sistema financeiro internacional estabelecida formalmente pelos acordos de Bretton Woods.

[4] Aliás, uma das mais importantes causas de os Estados Unidos terem iniciado a Guerra Fria teria sido, em parte considerável, o sistema político desse país, em que um político tem que fazer grandes e inflados discursos e promessas para convencer seus eleitores a votarem nele... procedimentos eleitorais à parte, a própria accountability teria sido a responsável pela Guerra Fria, em contraposição à União Soviética – país então destituído desse conceito, assim como a atual (e a antiga) Rússia.

[5] Dos dois lados do espectro ideológico, a esquerda é que de maneira mais marcada é anti-americana: prova disso é a existência do Fórum Social Mundial, que já passou por sua quinta versão, reúne dezenas de milhares de pessoas cada vez que ocorre, multiplica-se em inúmeros “fóruns” regionais e temáticos e tem como uma de suas “propostas” básicas o fim do poder (ou da hegemonia, ou do imperialismo, ou...) dos Estados Unidos.

Por outro lado, algumas acusações dos esquerdistas são extremamente procedentes, como a que se refere à pretensão dos estadunidenses a reduzirem a eles mesmos o título de “americanos”, como se o “resto” da América não fosse, também, americano. Alguns direitistas brasileiros, por exemplo, defendem o suposto direito dos estadunidenses em incorrerem nessa confusão, o que é completamente despropositado.

[6] Atenção para a expressão que utilizo: “projeto”. Não advogo, de maneira alguma, que o atual ordenamento do mundo seja “justo” ou que a conduta atual dos Estados Unidos, com George W. Bush à frente, seja a melhor possível. O que advogo, sim, é que o projeto implementado historicamente pelos Estados Unidos a partir da II Guerra Mundial em termos mundiais é bom e correto e é, em última análise, o caminho que se deve seguir, apenas se aperfeiçoando. Não confundir, portanto, o ideal com o real.

[7] Na verdade, a distinção entre as várias regiões manteve-se ainda nesse período. Embora considerando globalmente a América Latina uma região semibárbara ou bárbara, o comportamento efetivo dos Estados Unidos no período que citamos variou: enquanto a América Central padeceu com as freqüentes invasões pelos marines ou com a tirania do dólar, a América do Sul permaneceu mais ou menos incólume (à exceção da Colômbia, que sofreu com o separatismo panamenho insuflado pelos estadunidenses, no início do século XX) (CONNELL-SMITH, 1966; ARON, 1974; HOROWITZ, 1975).

[8] Nesse sentido, por exemplo, os livros de Luís Alberto Moniz Bandeira (1998; 2001) – que, de resto, como comunista, é anti-americano – são excelentes fontes de informação sobre a ação dos Estados Unidos no Brasil e não deixam dúvidas a respeito de seu sentido.

[9] Insisto em um ponto: geralmente os quatro tipos de objeção aos Estados Unidos vêm misturados e confundidos. Em que pesem os interesses econômicos estadunidenses, o fato é que as suas condutas em relação à América Latina dependem muito mais da vontade política do grupo no poder (particularmente do Presidente da República) que de questões econômicas estruturais. Enfatizo: a vontade política de um governante ou de outro, em cada conjuntura, é muito mais importante para o comportamento global dos Estados Unidos em relação à América Latina que as “determinações do capital” (por exemplo). Em política internacional as variáveis propriamente políticas são bastante arredias à redução às variáveis econômicas.

[10] Minha argumentação, como se percebe, refere-se à esquerda, pois no Brasil há apenas uma pequena direita intelectualmente ativa e que, de modo geral, é pró-norte-americana. Em outros países, como a França, existe uma direita, que tem uma atuação intelectual mais marcada e que, em seus setores mais radicais, também é anti-americana – em termos quase similares aos da esquerda (cf. REVEL, 2003).

[11] É claro que há intelectuais e intelectuais, há políticos e políticos. A questão é: quantos intelectuais de esquerda têm os cuidados metodológicos a que me refiro e a honestidade intelectual que estou cobrando? Até onde sei, se há alguns, são muito poucos. A mesma coisa em relação aos políticos práticos de esquerda – isto é, até que alcancem o poder, quando as posições tornam-se mais variadas e matizadas.

[12] Detalhes mais sórdidos da história política mundial no período anterior à II Guerra Mundial também não são normalmente mencionados, como o apoio decisivo que os comunistas alemães deram, no final da República de Weimar, a Hitler ou mesmo o acordo de não-agressão mútua entre Hitler e Stálin, de 1939.

[13] Novamente, uma digressão necessária: em que pese o fato de a soberania e a “autodeterminação dos povos” serem conceitos metafísicos, não é aceitável a intromissão de um país nos assuntos internos de outros, sem a permissão do país que sofreu a intromissão. A discussão não é simples ou fácil, mas nem o colonialismo, nem o intervencionismo, nem as “guerras preventivas” da doutrina Bush são aceitáveis.