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12 março 2024

O altruísmo é sempre apenas a satisfação do egoísmo?

No dia 16 de Aristóteles de 170 (12.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, devido à sua extrema importância, retomamos e respondemos pormenoridamente à questão: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/2r8u0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Y4lxn). O sermão começou efetivamente em 1h 06 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se transcritas abaixo.

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O altruísmo é sempre apenas a satisfação do puro egoísmo? 

-        Durante a prédica do dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) retomamos inicialmente as máximas morais apresentadas por Augusto Comte no início da décima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime privado

o   Após retomarmos a máxima positivista – “Viver para outrem” –, surgiu uma interessante dúvida: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Essa dúvida não apenas é intelectualmente interessante; ela também é moral e praticamente importante, pois diz respeito a como realizamos o altruísmo e à orientação subjetiva que damos às nossas ações

o   Além disso, é importante notar que, também do ponto de vista intelectual, essa questão é central para o Positivismo, pois tem a ver com como descrevemos as relações entre o altruísmo e o egoísmo de diferentes pessoas

o   Assim, mesmo repetindo vários temas e várias observações que fizemos na semana passada e mesmo hoje, devido à importância central do tema julgamos importante dedicar todo um sermão a ele

-        Comecemos por lembrar as características da nossa máxima “Viver para outrem”:

o   Antes de mais nada: a palavra “outrem” significa “outro”, ou “outros”

o   A fórmula positivista é superior à máxima antiga (“Agir com os outros como gostaria de ser tratado”) e à medieval (“Amar o próximo como a si mesmo”)

§  Essas duas máximas apresentam uma certa evolução, na medida em que passam da conduta externa (na fórmula antiga) para a motivação subjetiva (fórmula medieval)

§  Entretanto, como é bastante claro, essas duas fórmulas concentram-se no egoísmo: não se trata de afirmar e realizar o altruísmo, mas apenas de satisfazer o egoísmo e de mais ou menos regular o egoísmo alheio

§  Ambas as fórmulas, e em particular a segunda, baseiam-se no amor divino, que é especialmente egoísta, antissocial e anti-humano

o   O “viver para outrem” orienta a vida de cada um diretamente para o altruísmo

§  Lembrando a máxima de Clotilde (“Que prazeres podem exceder os da dedicação?”), resulta que a lei do dever é também a fórmula da felicidade

-        Passemos ao que nos interessa hoje; comecemos lembrando que o “viver para outrem” tem duas partes:

o   O “viver para outrem”, que consiste na orientação altruísta do conjunto da vida humana e na definição de um critério claro para definirmos todas as pequenas, médias e grandes decisões que temos que tomar no dia a dia

§  É nessa parte que consiste a lei do dever

o   O “viver para outrem”, que consiste em que cada um de nós tem que estar vivo, e em boas condições de saúde física e mental, para podermos dedicar-nos aos outros

§  Assim, essa parte consiste em garantir que os agentes humanos existam e, portanto, ela garante a satisfação do egoísmo de cada um

·         A esse respeito, nota Augusto Comte que a orientação para o altruísmo não pode consistir na negação do egoísmo, com isso indicando que não devemos autoflagelar-nos (e, ainda menos, não devemos suicidar-nos)

§  A satisfação do egoísmo, nesse sentido, portanto, consiste na condição objetiva (e até subjetiva) para a realização do altruísmo

§  Entretanto, é fundamental termos clareza de que essa satisfação do egoísmo tem que se submeter à regra do dever, ou seja, ao estímulo do altruísmo e à compressão do egoísmo

·         Sem tal entendimento, a fórmula torna-se incoerente e imoral

·         A satisfação do egoísmo subordina-se à realização do altruísmo; assim, tal satisfação consiste em uma condição (para o altruísmo) e não de um objetivo em si mesmo

·         A felicidade que devemos buscar não consiste na satisfação egoísta de algo abstrato chamado “felicidade”: a felicidade que devemos, e que podemos, buscar consiste em nossa dedicação para os demais

·         Todas as formas de hedonismo enquadram-se na satisfação do egoísmo por si só, mesmo que sob o rótulo enganador de “felicidade pessoal”

o   Em outras palavras, o hedonismo é uma via egoísta e individualista – e, portanto, ilusória – de busca da felicidade

o   Lembramos aqui o caráter profundamente egoísta do hedonismo porque ele é uma característica das sociedades ocidentais contemporâneas

§  As sociedades ocidentais assim combinam o estímulo sistemático de inúmeras formas de egoísmo e individualismo com o estímulo ao desejo de consumo (na maior parte das vezes de produtos e serviços inúteis), em algo que, adotando a terminologia metafísica do marxismo, poderíamos chamar de “capitalismo hedonista”

-        Enfrentemos, agora, a pergunta inicial: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Em uma primeira aproximação, sim: nossas ações buscam satisfazer necessidades alheias

§  Mas esta primeira aproximação é bastante grosseira e, como veremos, é também bastante superficial

o   Entretanto, não devemos nem podemos considerar que a lei do dever consiste em atos altruístas satisfazendo puros egoísmos, pois isso pressupõe (ou deixa de pressupor) várias coisas e implica (ou deixa de implicar) outras tantas:

§  Antes de mais nada, essa concepção – de que a lei do dever no fundo é um altruísmo satisfazendo egoísmos puros – desconsidera o caráter relacional do ser humano, em particular no sentido de que as concepções morais têm que ser generalizadas

·         Nesse sentido, essa concepção desconsidera a noção de dever, isto é, de responsabilidades mútuas, válidas de todos para com todos

§  Em segundo lugar, essa concepção desconsidera o aspecto elementar de que a lei do dever e da felicidade vale tanto para mim (que sou, ou que devo ser, altruísta) como para os demais, que também devem ser altruístas

§  Em terceiro lugar, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo (no “viver” do “viver para outrem”) tem que se limitar pelo e subordinar-se ao altruísmo

·         Nesse sentido, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo alheio ocorre não para o estímulo desse egoísmo, mas como condição para que essas outras pessoas possam desenvolver o altruísmo

§  Em quarto lugar, devemos notar que as nossas ações altruístas não são sempre nem necessariamente dirigidas para indivíduos específicos, mas que muitas vezes elas têm um foco coletivo e menos específico (de tal sorte que, nesse sentido, elas não satisfazem nenhum egoísmo em particular)

·         As políticas públicas são exemplos fáceis desse caráter difuso de muitas das ações altruístas

·         Mas é claro que, tanto antes quanto depois das políticas públicas, muitas das nossas ações altruístas individuais também apresentam um caráter difuso

§  Em quinto lugar, considerando as características do regime público no Positivismo, devemos notar que a educação positiva tem que estimular o altruísmo; dessa forma, cria-se uma orientação geral na sociedade em favor do altruísmo, evitando que as ações altruístas individuais visem apenas, ou principalmente, a satisfazer o puro egoísmo dos outros

§  Em sexto lugar, também temos que lembrar que o altruísmo realiza-se na prática por meio de ações de aperfeiçoamento

·         Tais ações tornam concreto o altruísmo e evitam que ele degenere em vaguezas místicas

·         O aperfeiçoamento tem vários âmbitos: material, físico (biológico), intelectual e moral

·         Esses aperfeiçoamentos podem, e devem, tornar-se diretamente altruístas por si sós, mesmo que muitas vezes eles tenham que ocorrer em indivíduos específicos

-        Devemos reforçar três aspectos específicos ao apreciarmos a concepção de que “o altruísmo sempre satisfaz o puro egoísmo alheio”

o   Em primeiro lugar, afirmarmos a primazia do altruísmo sobre o egoísmo é algo tanto descritivo quanto prescritivo, ou seja, tanto corresponde à realidade dos fatos quanto, a partir desse caráter descritivo, é também uma recomendação moral e prática

§  Em outras palavras: a orientação moral e prática do “viver para outrem” não é uma fórmula puramente “filosófica”, puramente “teórica”: ela baseia-se na realidade dos fatos, ou melhor, na realidade da natureza humana, conforme ela desenvolveu-se transparece ao longo da história e com base em pesquisas sociológicas e da chamada neurociência

§  Como vimos nos itens acima, o altruísmo generalizado tem (1) uma base sociológica: ele baseia-se no desenvolvimento histórico, em pressões sociais, em valores compartilhados, em práticas coletivas

§  Além disso, esse altruísmo generalizado tem (2) uma base moral, neurocientífica: o altruísmo é generalizável em termos de natureza humana, ao contrário do egoísmo; o altruísmo consegue dominar e orientar o conjunto da existência humana (ou seja, realiza a unidade moral), ao contrário do egoísmo

o   Em segundo lugar, ainda em termos sociológicos e morais, a concepção do “altruísmo como apenas a satisfação do puro egoísmo alheio” deixa de lado o caráter relacional do ser humano, ou seja, deixa de lado o seu aspecto social e concentra-se na concepção “ego-cêntrica”, que entende que a sociedade é apenas a justaposição de indivíduos (que, portanto, reduzem-se aos seus egoísmos)

o   Em terceiro lugar, em termos de história das idéias, essa concepção individualista tem origem metafísica e, como sabemos, difundiu-se muito a partir do liberalismo, com todas as filosofias e “ideologias” de origem metafísica mais recente (como a doutrina dos “direitos humanos”, o marxismo, os próprios liberalismos econômico e político etc.)

§  Nesse sentido, a importância central de responder à questão baseia-se no fato de que ela surge naturalmente do ambiente metafísico que caracteriza o conjunto do Ocidente nas últimas décadas (ou seja, desde o final da II Guerra Mundial e que reforça tendências críticas e negativas que, por sua vez, têm alguns séculos de existência)

§  Podemos dizer, então, que a importância de responder à questão que motivou este sermão, mesmo repetindo temas e concepções que têm sido apresentados nas últimas semanas, deve-se a que é necessário afirmar as concepções positivistas contra a imaginação sociológica metafísica atualmente disseminada

24 janeiro 2024

Necessidades individuais satisfeitas pelas religiões

No dia 23 de Moisés de 170 (23.1.2024) iniciamos as atividades da Igreja Positivista Virtual no ano de 170 (2024). Nessa ocasião, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

Antes da leitura comentada, indicamos diversas atividades realizadas no período do recesso: 

- a comemoração da Festa da Humanidade (1º de Moisés/1º de janeiro);

- a celebração do nascimento de Augusto Comte e também a celebração de Rosália Boyer (19 de Moisés/19 de janeiro);

- a criação da coleção "Positivism" na biblioteca virtual Internet Archive.

Depois desses anúncios, lembrando que o Positivismo é uma religião cívica, lemos o manifesto intitulado "Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista", lançado em 8 de Moisés de 170 (8.1.2024) (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/01/manifesto-pela-republica-favor-da.html).

Na parte do sermão, comentamos as necessidades individuais satisfeitas pelas religiões. As anotações que serviram de base para essa exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (disponivel aqui: https://l1nq.com/psLt3) e Igreja Positivista Virtual (disponível aqui: https://acesse.one/uBHLP).

A leitura do manifesto iniciou-se aos 13 min 56 s.

A leitura comentada do Catecismo positivista começou aos 34 min 25 s.

O sermão começou em 1h 12 min 05 s.

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-        Há algumas semanas tivemos uma observação, que é também uma espécie de dúvida, apresentada por um jovem que tem estudado o Positivismo:

o   Por vezes as teologias obtêm e mantêm seus aderentes devido à necessidade de muitos indivíduos de verem-se tutelados integralmente, o tempo todo, por entidades todo-poderosas

-        Em primeiro lugar, a percepção de que há teológicos que precisam desse tipo de tutela não pode conduzir-nos à ilusão, ou até ao preconceito, de que todos os teológicos buscam essa tutela

o   Em primeiro lugar, devemos lembrar que há diferentes tipos de teologia e que, portanto, elas geram ou estipulam diferentes tipos de comportamentos

§  A busca de tutela é mais própria ao monoteísmo – e, em particular, ao monoteísmo cristão – que ao politeísmo, em que os vários deuses têm comportamentos díspares mas que, com freqüência, não são exatamente tutelares (e as tutelas são particulares a grupos ou âmbitos específicos)

o   Mas, de qualquer maneira, mesmo no caso do monoteísmo cristão, diferentes tradições e diferentes indivíduos têm relações diferentes com a divindade

§  A relação de submissão solicitante mantém-se em geral, mas é claro que, por um lado, há indivíduos que requerem menos a tutela, assim como, por outro lado, há indivíduos que solicitam mais a tutela

-        A busca de uma divindade todo-poderosa que tutele o tempo todo os indivíduos é característica de naturezas mais frágeis, por vezes em termos objetivos (isto é, pessoas que vivem na pobreza ou na miséria), mas com freqüência em termos subjetivos

o   Em face disso, duas reflexões surgem:

§  (1) Pessoas mais frágeis precisam de mais apoio

·         Mas não devemos criticar essa necessidade em si mesma: isso é uma questão de respeito às características pessoais de cada um e mesmo às condições sociais em que vivem, além de isso evocar a regra do dever altruístico: a dedicação dos fortes pelos fracos

§  (2) Mas, por outro lado, em certas situações, essa busca de tutela tem de fato um aspecto de infantilidade, em que um adulto busca o apoio subjetivo de uma figura paterna (ou, mesmo, em termos mais amplos, de uma figura parental)

o   Ora, como indicamos antes, diferentes religiões estimulam diferentes sentimentos e, daí, conduzem a diferentes comportamentos: os monoteísmos efetivamente estimulam mais a busca de uma tutela absoluta:

§  As figuras patriarcais, tutelares e vingativas do judaísmo e do cristianismo, a divindade punitiva do Islã, mesmo as ambigüidades afetivas e apocalípticas da trindade cristã

§  Tudo isso, próprio a uma época que já se encerrou há muito e muito tempo, ainda hoje estimula bastante muitos comportamentos irresponsáveis, seja porque são “fanáticos”, seja porque são infantilizados

-        Feitos esses comentários, devemos ter cuidado com outra coisa: não devemos apenas criticar a situação dos monoteístas que buscam a tutela; devemos considerar que essa busca em si mesma corresponde a uma necessidade humana verdadeira e legítima, mas cuja solução teológica (em particular monoteísta), como de hábito, é inadequada

o   Antes de prosseguirmos, devemos lembrar que as divindades monoteicas – seja a do judaísmo, seja a do catolicismo, seja a islamismo – estão radicalmente separadas dos seres humanos, não precisam dos seres humanos para nada e, ante elas, os seres humanos estão solitários e desamparados

§  A solidariedade terrena é certamente estimulada pelo altruísmo inato ao ser humano, mas, do ponto de vista dogmático, tal solidariedade é apenas uma forma de aumentar o exército de indivíduos isolados (e interesseiros) perante a divindade que não tem nenhum interesse real em nós

-        A noção de “Humanidade” tem, e tem que ter, um aspecto de conforto, de apoio; esse elemento é tanto objetivo quanto subjetivo

o   Antes de mais nada, devemos ter clareza de que o apoio fornecido pela Humanidade é de caráter relativo e não absoluto, ou seja, não é todo-poderoso e em larga medida depende das ações dos seres humanos

o   Augusto Comte referia-se por vezes à Humanidade como a nossa “providência real”: esse aspecto de “providência” já deixa claro que é ela, a Humanidade, que nos cria e que, em última análise, fornece-nos tudo aquilo de que precisamos

§  A imagem que representa a Humanidade (a mulher com cerca de 30 anos, segurando em seu colo um bebê) sugere diretamente o apoio, o carinho, o afeto, o conforto que a Humanidade provê e inspira-nos

o   Mas a Humanidade é relativa e é composta; como dizia Augusto Comte a partir de Dante, ela é “filha de seu filho”: a Humanidade tem vários âmbitos de atuação

-        Por um lado, a Humanidade é um ser composto: seus mínimos elementos são as famílias e as mátrias; nas famílias e nas mátrias – e também, cada vez mais, no que se chama atualmente de “sociedade internacional” – buscamos e obtemos os apoios de que necessitamos

o   O centro moral de cada família é a mulher, seja como esposa, seja como mãe: assim, o conforto moral que ela provê é uma prefiguração da deusa positiva

o   Além disso, em parte generalizando o apoio doméstico, em parte solucionando as dificuldades que, concretamente, todos podemos enfrentar na obtenção de apoio e amparo doméstico, Augusto Comte elaborou a concepção dos “anjos da guarda”

§  Os anjos da guarda consistem precisamente naquelas figuras que nos ampara(ra)m afetivamente e que, por isso, são merecedoras da nossa idealização pessoal

§  Essas idealizações são esforços conscientes da nossa parte de homenagear essas figuras, estabelecendo-as como importantes e poderosos apoios subjetivos em nossas vidas, o que resulta, além disso, em estímulos contínuos para o nosso desenvolvimento e aperfeiçoamento moral, intelectual e prático

-        Por outro lado, a ação da Humanidade é tanto objetiva quanto subjetiva:

o   Citamos há pouco as famílias e as mátrias (e até a sociedade internacional): elas têm um caráter objetivo, ao fornecer-nos o amparo material em nossas vidas

o   Mas as famílias, as mátrias e a Humanidade, evidentemente, também atuam de maneira subjetiva, ao estimular, alimentar e regular nossos sentimentos e nossas idéias

§  Aliás, é exatamente dessa forma e a partir dela – isto é, da característica subjetiva – que cada um de nós pode ter o apoio e o amparo da Humanidade:

·         Seja por meio da inspiração da figura abstrata da Humanidade, seja por meio da ação mais direta e concreta das nossas mães, das nossas esposas, das nossas irmãs, a Humanidade acolhe-nos e conforta-nos

·         Por outro lado, as famílias, as mátrias, a Humanidade inspiram-nos a noção de dever, isto é, de responsabilidades de todos para com todos, em particular dos fortes para com os fracos

o   O resultado dos aspectos objetivos e subjetivos é que a Humanidade:

§  Conforta-nos ativa e passivamente, direta e indiretamente

§  Cria, mantém e desenvolve as condições para esse conforto

§  Esse conforto não é só subjetivo, mas é também objetivo, na medida em que a realidade humana não é a de um isolamento individual radical, mas é a de relações permanentes por todos os lados – relações que, aliás, não se limitam aos seres humanos, mas estendem-se aos animais domésticos e, por meio do fetichismo, também a muitos objetos, ao Sol, à Lua, ao fogo etc.

§  Mas temos que insistir neste ponto: o conforto objetivo e subjetivo provido pela Humanidade estimula e, na verdade, exige a noção de dever, isto é, de responsabilidade de todos para com todos

-        Como uma decorrência do aspecto anterior (objetividade/subjetividade), a ação da Humanidade dá-se tanto no presente quanto, ainda mais, no passado e no futuro:

o   A distinção entre passado/futuro e presente conduz-nos à distinção entre a vida objetiva e a vida subjetiva de uma forma mais precisa, ao indicar que na vida subjetiva estão todos os seres humanos convergentes que já morreram, além de aqueles todos que ainda não nasceram; na vida objetiva estão os servidores da Humanidade, os seus agentes concretos, que são todos os indivíduos que atuam em prol dos seres humanos e das coletividades

§  Não existem indivíduos por si sós; o que há são integrantes de famílias e de mátrias, que também colaboram para a Humanidade

o   Por um lado, os indivíduos, ou melhor, os agentes concretos da Humanidade são os titulares de deveres

§  Esses deveres, aliás, mudam de acordo com os grupos sociais que se considera; quanto mais recursos tiverem os grupos sociais, maiores são seus deveres e, portanto, maiores são as cobranças que devem ser feitas sobre eles

§  De qualquer maneira, como já indicamos algumas vezes: entre os deveres que cabem a todos estão os de atuarem em prol dos demais (é o objetivo concreto do “viver para outrem”) e, portanto, o de atuarem objetivamente como a providência que é a Humanidade

o   Por outro lado, os agentes concretos da Humanidade são confortados, inspirados, alimentados e orientados pela Humanidade em suas ações

§  A lei do dever, isto é, o “viver para outrem”, é também um ideal, um objetivo geral que orienta a vida de cada um de nós

§  Assim, sob a inspiração da Humanidade, colaboramos ativamente para o melhoramento e o enriquecimento da vida de todos como, em termos “puramente” individuais, temos sempre objetivos de vida: não ficamos nunca sozinhos no universo nem ficamos desorientados em nossas vidas

-        Para concluir:

o   Como dissemos antes, diferentes religiões estimulam diferentes traços da natureza humana

o   Os monoteísmos estimulam com freqüência – e talvez de maneira particular – a busca do tutelamento individual, ou melhor, a busca de uma tutela infantilizante

o   Mas se a tutela infantilizante é uma solução que, no final das contas, é degradante, ainda assim podemos considerar que ela baseia-se por vezes em necessidades legítimas – de apoio, de amparo, até mesmo de orientação na vida

o   A respeito de todos esses aspectos, a noção e a realidade da Humanidade satisfazem mais e melhor os seres humanos:

§  Os vários níveis concretos da Humanidade apóiam-nos e amparam-nos de verdade

§  A noção abstrata de Humanidade estabelece a lei do dever, que permite o apoio e o amparo e que dá sentido à vida de cada um de nós

§  Essas diversas concepções podem parecer muito abstratas à primeira vista, mas elas são radicalmente concretas: nossas mães são nossos amparos; cada família, cada mátria, cada indivíduo, cada animal, cada fetiche atua para melhorar nossas vidas: é assim, e é só assim, que age a Humanidade e que é possível termos apoio e amparo

·         Inversamente, cada ser humano que atua de maneira egoística e/ou destrutiva age contra a lei do dever e contra a Humanidade


09 novembro 2022

Anotações sobre a teoria positiva dos deveres

No dia 4 de Frederico de 168 (8.11.2022), como de hábito, fizemos uma prédica positiva; na parte da leitura comentada do Catecismo positivista, demos continuidade à teoria geral do culto, começando a abordar a oração positiva. Já na parte de sermão, abordamos aspectos da teoria positiva dos deveres.

Essa exposição da teoria dos deveres foi pensada como um complemento, ou melhor, como o antecedente lógico e moral da teoria da felicidade (que, por sua vez, foi exposta na prédica anterior).

Sem pretender esgotar a teoria positiva dos deveres - bem longe disso! - as anotações que serviram de base para a exposição estão disponíveis abaixo. A exposição oral está disponível aqui (no canal Positivismo do Youtube) e aqui (no canal Apostolado Positivista do Facebook), a partir de 48' 30".

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Anotações sobre os deveres

 

-        O ser humano é um ser relacional: as suas relações constituem a sociedade e tornam humano o ser humano

o   Qualquer que seja o objetivo, o ser humano precisa sempre se relacionar para atingir as metas

o   Evidentemente, tanto o egoísmo como, principalmente, o altruísmo exige as relações

§  Como sabemos, por definição o altruísmo baseia-se nas relações humanas

o   Dessa forma, as relações sociais têm que ser afirmadas e estimuladas, quer seja para que o ser humano progrida materialmente, quer seja para que, em particular, progrida moralmente

o   De uma perspectiva moral e política, a afirmação das relações consiste nos deveres, que constituem precisamente as relações mútuas entre grupos e indivíduos

o   Uma outra forma de entender os deveres consiste nas obrigações que os grupos (e os indivíduos) mantêm entre si, no sentido de satisfazerem determinadas necessidades e responsabilidades

-        Como dizia Clotilde de Vaux, “para criar sentimentos são necessários deveres”

o   Isso significa que as obrigações entre grupos (e indivíduos) estimulam e desenvolvem os sentimentos correspondentes

o   De modo mais específico: a felicidade individual é uma conseqüência do comprimento dos deveres (e, de maneira mais precisa, dos deveres altruístas), não o seu pressuposto ou a sua meta

-        Enquanto a noção de deveres é a forma positiva de estimular e regular as relações sociais, a noção teológica e, principalmente, metafísica é a noção de “direitos”

o   Os direitos são obrigações unilaterais que um grupo (ou um indivíduo) têm para com outros grupos (ou indivíduos)

o   De maneira mais direta e mais clara, uma outra forma de entender os direitos consiste em que eles são privilégios que determinados grupos (e/ou indivíduos) possuem e que podem exigir, de maneira unilateral, dos demais grupos (e/ou indivíduos)

§  O caráter fundamentalmente antissocial da noção de direitos é bastante claro, portanto

o   A noção de direitos tem um aspecto teológico e também pode ter um aspecto metafísico

§  Essas origens revelam-se na forma dos “direitos divinos” e, depois, nos “direitos naturais”

§  O aspecto teológico da noção de direitos evidencia-se quando a divindade estabelece para alguns grupos (e/ou indivíduos) a possibilidade de exigir unilateralmente dos demais a prestação de bens e/ou serviços

§  Já o aspecto metafísico dos direitos evidencia-se no rompimento dos vínculos mútuos entre grupos (e/ou indivíduos): nesse caso, a metafísica manifesta-se no caráter dissolvente dos direitos e, de maneira mais ampla, no caráter dissolvente dos antigos laços sociais

§  Tendo origem teológica e estendendo-se para a metafísica, os direitos e seu unilateralismo são absolutos e anti-relativos (e, como já vimos, não por acaso são anti-relacionais)

o   A constituição de uma sociedade positiva, humana, fraterna e relativa exige necessariamente, portanto, a substituição dos direitos pelos deveres

-        Reiterando: os deveres são mútuos

o   Os deveres mútuos são obrigações e responsabilidades que um grupo (e/ou um indivíduo) deve para outro(s) grupo(s) e este(s), por sua vez, deve(m) para o primeiro grupo

§  Os deveres mútuos implicam, portanto, responsabilidades de parte a parte, quando não responsabilidades compartilhadas

o   As responsabilidades variam, portanto, de grupo para grupo, da mesma forma que o tamanho dessas responsabilidades

·         Exemplo: o patriciado e o proletariado têm responsabilidades pelo menos em termos de manutenção e geração de riquezas materiais, cada qual em sua posição social

·         Mas as responsabilidades do patriciado são maiores: não apenas em termos de manutenção e aumento das riquezas (que, grosseiramente, podemos considerar apenas como a realização do lucro), mas principalmente em termos de pagamento de salários dignos para os proletários

o   A fórmula que resume as obrigações mútuas é esta: devotamento dos fortes aos fracos e veneração dos fracos pelos fortes

§  Na Antigüidade a veneração dos fracos era enfatizada; na sociocracia, o devotamento dos fortes tem maior importância

-        Os deveres têm um caráter moral e não político

o   Os deveres devem ter um caráter moral e não político devido a pelo menos dois motivos:

§  O caráter político (isto é, obrigatório) dos deveres torná-los-ia opressivos

§  O caráter moral dos deveres evidencia seu caráter facultativo e, portanto, também o valor da adesão a eles

o   Vale notar que o caráter moral e não político dos deveres consiste em uma aplicação adicional do princípio da separação entre os poderes Temporal e Espiritual

-        No que se refere aos “direitos”, ainda é necessário indicar que a palavra “direito”, nas línguas neolatinas, resulta em uma confusão, entre o ordenamento jurídico (Law) e os direitos como antideveres ou como não-deveres (rights); mas há que se distinguir entre uma coisa e outra