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23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”        

02 abril 2024

Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?

No dia 9 de Arquimedes de 170 (2.4.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão abordamos um tema um pouco diferente, mais a título de esclarecimento que de reflexão: quem são os republicanos e os democratas dos Estados Unidos?

Antes do sermão, fizemos duas exortações: sejamos altruístas! E façamos as orações positivas!

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/CvuES) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/NSvMW). O sermão começou aos 46 min 50 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.

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Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA? 

-        O tema da prédica desta semana é “quem são os democratas e os republicanos dos EUA?”

o   Naturalmente, surge aí a pergunta: por que esse tema, tão específico e tão fora do habitual das prédicas?

o   Os motivos são bem simples e bem claros:

§  Por um lado, as clivagens da política interna dos EUA têm sido cada vez mais importadas para o Brasil, afetando cada vez mais a nossa própria política: basta considerarmos o conservadorismo arquirreacionário evangélico e trumpista, à direita, e o agressivo particularismo e exclusivismo identitário, à esquerda

§  Por outro lado, os sentidos bastante específicos que assumem os termos “democrata” e “republicano” nos EUA (sentidos que têm sido importados para o Brasil) influenciam a maneira como os entendemos aqui no Brasil e, portanto, distorcem e dificultam a maneira como nós, positivistas, entendemo-los

-        Antes de passarmos ao tema deste sermão, convém revermos dois pares de conceitos: por um lado, (1) direita/esquerda e, por outro lado, (2) democracia/republicanismo para o Positivismo

-        Sobre direita e esquerda:

o   Os sentidos desses dois conceitos variaram (e variam) muito ao longo do tempo

o   Esses dois conceitos surgiram na Revolução Francesa, na fase da Assembléia Nacional (1789-1792), em que os favoráveis ao fim do feudalismo e dos privilégios sentavam-se à esquerda no alto da sala de reuniões e os defensores dos privilégios sentavam-se à direita embaixo (a sala do plenário da Assembléia era um anfiteatro)

§  Assim, inicialmente a noção política de “progresso” foi associada à noção espacial da esquerda; as noções de “conservadorismo” e/ou de defesa da “ordem (antiga)” foi associada à noção espacial da direita

§  Esse sentido mais ou menos atravessou o século XIX

§  Vale notar que o progressivismo foi associado, ao longo do século XIX, também ao republicanismo e/ou ao “socialismo”

o   Após a Revolução Russa (1917), e ainda mais com a Guerra Fria (1947-1991), a esquerda passou a ser vinculada ao marxismo e, de modo mais específico, ao comunismo/sovietismo; a partir disso e em contraposição complementar, a direita associou-se a diversas oposições: conservadorismo, “ordem”, liberdade, liberalismo, livre mercado, autoritarismos de direita e até Ocidente e ocidental

o   O fim da Guerra Fria tornou essa oposição confusa e um pouco esvaziada, em que todos os sentidos anteriores mais ou menos se mantêm e confundem-se mutuamente, ao sabor das disputas políticas locais e momentâneas

o   Em 1994 Norberto Bobbio propôs que a esquerda é a favor da igualdade e que a direita é a favor da liberdade

§  A proposta de Bobbio tornou-se famosa, mas apresenta defeitos históricos e empíricos evidentes

§  Em todo caso, a proposta de Bobbio apresenta direita e esquerda como propositoras de conceitos afirmativos e moralmente (mais ou menos) defensáveis

-        Sobre democracia e republicanismo no âmbito do Positivismo:

o   Como sabemos, no Positivismo a república é um dos conceitos políticos mais importantes; na verdade, o conceito fundamental é a sociocracia

§  Tanto a sociocracia quanto, por extensão, a república apresentam o duplo caráter de garantir a ordem social e estimular o progresso social, com as liberdades de consciência, expressão e associação, orientada pela opinião pública positiva, sob o primado da fraternidade universal e, portanto, da paz

o   A república, no Positivismo, tem um duplo caráter:

§  Um negativo, que constitui a ausência de monarquia – ou seja, tanto da instituição monárquica quanto, de maneira mais profunda, do seu fundamento filosófico, que é o absolutismo político de tipo teológico

§  Um positivo, que constitui o primado do bem comum pacífico como regulador de todas as relações sociais e de todas as instituições; em particular, essa república deve ter um caráter social e não meramente político

·         Novamente: as liberdades de consciência, de expressão e de associação, bem como as garantias individuais e o primado da opinião pública positiva, são fundamentos políticos da república

·         O caráter “social” da república significa que ela deve ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, especificamente dos trabalhadores; o caráter “meramente político” conferir-lhe-ia um aspecto burguês, ou burguesocrático, servindo apenas para manter a dominação política e a exploração econômica da burguesia (associada ou não à nobreza) sobre o proletariado

o   A democracia, por outro lado, é um conceito metafísico, criado para contrapor a “soberania popular” à “soberania divina (dos reis)”; em outras palavras, é um conceito crítico, destrutivo, dissolvente, feito sob medida para negar o poder da monarquia e os seus fundamentos filosóficos

§  A soberania popular é absoluta: ela está sempre certa; por isso, ela rejeita discussão; ela impõe-se a todos e despreza preocupações individuais; como se isso não fosse pouco, há a imposição de uma religião civil (naturalmente, um cristianismo); a opção a tudo isso é a prisão e/ou o exílio

§  A soberania popular – teorizada por Rousseau – apresenta, portanto, todas as características da soberania divina dos reis; o que ela faz é transferir para um “povo” indefinido o que antes era atribuído com clareza aos reis

§  De maneira muito confusa há uma certa noção de “bem comum” ou de “interesse social” na soberania popular; entretanto, muito mais claro e mais forte são suas características evidentemente autoritárias (ou melhor, totalitárias)

§  O que atualmente se chama de “democracia” é uma combinação de limitação liberal do poder, afirmação das liberdades públicas e metafísica da soberania popular, a que se somam as eleições periódicas

·         Ou seja: a chamada democracia atual é um nome de qualquer maneira inadequado para regimes políticos incoerentes – em que, ainda assim, considera-se que as liberdades e alguma concepção de bem comum são importantes

-        Passando para democratas e republicanos nos EUA:

o   Considera-se que a independência dos EUA ocorreu em 4 de julho de 1776, em meio à Guerra de Independência (1775-1783)

o   Vale notar que entre 1781 (com redação em 1777) e 1788 os Estados Unidos constituíram-se na forma de uma confederação

§  Essa confederação era regulada pelos “Artigos da Confederação”

§  Embora os Estados Unidos fossem, então, um único país, ele era uma confederação, em que cada estado tinha amplos poderes; não havia um governo nacional, apenas um congresso nacional cujos poderes eram limitados (paz e guerra; moeda; pesos e medidas; comércio exterior)

§  O Presidente do Congresso exercia as funções de chefe do governo

o   Com a promulgação da constituição de 1787, que entrou em vigor em 1788, os Estados Unidos assumiram a atual estrutura política: três poderes (“branches”), Presidente da República com poderes nacionais efetivos, congresso bicameral (Senado para representação estadual, Câmara para representação popular), eleição do presidente em dois níveis (via colégio eleitoral)

§  Essa estrutura política dos EUA conjuga diversos mecanismos refletindo as preocupações do final do século XVIII: um federalismo muito intenso, um grande país (com intenções de ampliar-se cada vez mais), a doutrina metafísica da divisão dos três poderes

§  Essa estrutura foi elaborada tanto para limitar o poder efetivo (em particular do governo nacional) quanto para evitar as paixões populares

o   A partir daí surgiram dois grupos, ou partidos: de um lado, os republicanos de Jefferson e Madison; de outro lado, os federalistas, de Hamilton

§  Esses partidos tinham esse nome mas não eram partidos no sentido atual; eram mais ajuntamentos de políticos com perspectivas próximas

§  Os republicanos de Jefferson também eram chamados de antifederalistas ou antiadministração (ou antigoverno); apesar do seu nome e do nome do outro partido, eles eram a favor do federalismo, isto é, da autonomia dos estados e da limitação do poder do governo central; também temiam as propostas centralizadoras, por vezes mesmo monarquistas, de Hamilton, que consideravam como potencialmente despóticas, aristocratizantes e antirrepublicanas

·         Não é à toa que Jefferson foi o propositor das primeiras dez emendas à constituição dos EUA; essas emendas foram propostas imediatamente após a promulgação da constituição e são consideradas, em seu conjunto, como a “carta de direitos” dos EUA

·         Também vale notar que Jefferson foi um dos grandes promotores do republicanismo como filosofia política e também foi o principal defensor da separação entre igreja e Estado

§  Os federalistas de Hamilton, apesar de seu nome, eram centralizadores (e potencialmente antifederalistas) e defendiam maiores poderes para o governo central e poder de ingerência nos estados subnacionais

·         Hamilton realizou um importante trabalho de fortalecimento do dólar e de criação de condições para o desenvolvimento nacional dos EUA

o   Jefferson foi eleito e reeleito presidente, governando entre 1801 e 1809; a ele sucedeu Madison, que era partidário de Jefferson e que também governou durante dois mandatos (1809-1817); em seguida, também pelo partido republicano de Jefferson, foram eleitos James Monroe (dois mandatos: 1817-1825) e, por fim, John Quincy Adams (1825-1829)

§  Em outras palavras, o partido republicano de Jefferson governou durante cerca de 40 anos; a partir dos anos 1810, viu-se em uma situação de unipartidarismo, na medida em que o partido federalista de Madison dissolveu-se àquela época

§  Ao longo da década de 1820, o partido republicano de Jefferson acabou perdendo sua identidade, perdendo seus valores e tornando-se na prática um partido catch-all, que visava apenas à busca do poder; com isso, acabou desfazendo-se

o   Em 1828 constituiu-se o partido democrata, sob Andrew Jackson, para que ele disputasse a presidência da república; ele foi de fato eleito e governou de 1829 a 1837

§  A plataforma de Andrew Jackson podia ser considerada “populista”: apelava para o homem comum (de modo geral agricultor), era contra o Estado forte e contra as elites (que ele via como corruptas e autocentradas); também defendia o protecionismo econômico nos EUA – e, isto é central, era contra a abolição da escravidão (e a favor da remoção forçada dos índios)

§  O partido democrata de Jackson, em termos de continuidade institucional, é o mesmo que existe atualmente

§  Ele manteve-se no poder entre 1829 e 1861

o   Em 1854 foi fundado o atual partido republicano, a partir da reunião de antigos adversários dos democratas com democratas contrários à escravidão; ele defendia então o republicanismo, o fim da expansão territorial da escravidão e o fim da escravidão em termos gerais

§  O primeiro presidente republicano foi Lincoln (1861-1865); dessa época até 1932 quase todos os presidentes dos EUA foram republicanos (as exceções foram Grover Cleveland e Woodrow Wilson)

o   O partido republicano, no século XIX, tinha sua base no norte e no oeste dos Estados Unidos; de modo geral eram contrários à escravidão (a postura de Lincoln a respeito acabou levando à guerra civil); em oposição, o partido democrata tinha sua base no sul dos Estados Unidos e eram favoráveis à escravidão e, depois da guerra civil, contrários à integração racial

-        Em 1929 iniciou-se a grande crise econômica e social; os republicanos então no poder (Hoover) adotaram uma política econômica conservadora, que aprofundou a crise; contra essa política lançou-se o democrata Franklin Roosevelt, que adotou uma plataforma de centro-esquerda, marcada pelo forte intervencionismo econômico

o   Governando durante quatro mandatos (1933-1945), Roosevelt lançou o New Deal (“Novo Acordo”, ou “Nova Negociação”), que seria um esforço de Estado de bem-estar social nos EUA

o   Em 1942 Roosevelt levou os EUA a participarem da II Guerra Mundial e a promover um novo internacionalismo (via ONU); após 1945, já sob Truman, os EUA surgiram como os grandes vencedores da guerra, com a bomba atômica, líderes do Ocidente e em disputa com a União Soviética

o   Tanto o New Deal quanto a guerra alteraram profundamente a política dos EUA, estabelecendo um padrão que foi seguido nas próximas décadas tanto por democratas quanto pelos republicanos: atuação do Estado na economia e preocupações sociais, internacionalismo, ativismo político-militar no exterior

§  Esse padrão foi seguido por democratas e republicanos; os democratas eram mais sociais e mais inclusivos internamente, mas mais agressivos externamente; os republicanos eram menos sociais e inclusivos internamente, mas mais negociadores externamente

o   O padrão surgido entre 1932 e 1945 foi modificado em 1981, quando o republicano Ronald Reagan adotou um novo discurso político-social, desprezando o sentido social do New Deal e defendendo a correção moral do individualismo e do egoísmo, no neoliberalismo; na política externa, ele adotou ações externas bastantes agressivas contra o bloco soviético

§  O novo padrão individualista e neoliberal de Reagan é o que vige atualmente

o   O democrata Bill Clinton manteve um internacionalismo mais ou menos pacifista e integrador; já em termos econômicos ele promoveu a desregulamentação da economia, em particular do mercado financeiro, estimulando a especulação e os ataques às economias nacionais

§  Na década de 1990 vários elementos juntaram-se: esvaziamento dos movimentos sociais classistas (devido ao fim da Guerra Fria); fim do movimento dos direitos civis dos anos 1960 (devido à vitória desse movimento); aprofundamento do caráter individualista próprio aos EUA e reforçado pelo neoliberalismo de Reagan; moda irracionalista pós-moderna: tudo isso se juntou na esquerda dos EUA, que passou a professar com intensidade o particularismo exclusivista e excludente do identitarismo

o   O republicano George W. Bush promoveu um internacionalismo agressivo e unilateral, a que deu fortes elementos nacionalistas e teológicos

§  Os traços do nacionalismo e da teologia política eram profundamente estranhos à tradição dos EUA desde a década de 1930

§  Esses dois traços deitaram raízes e encontraram eco nas décadas seguintes

o   Ao longo das décadas de 2000 e 2010 alguns outros elementos surgiram ou ressurgiram: o tradicionalismo reacionário anti-intelectual, antiprogressista e, cabe notar, (paradoxalmente) antiocidental; o desenvolvimento das redes sociais, devido à expansão da internet, e o estímulo da cultura do ódio que é próprio ao modelo de negócios do Vale do Silício; a percepção dos limites e dos problemas da globalização e do neoliberalismo, gerando deslocamento de empregos, o empobrecimento de cidades, estados e países e a crise de 2008; a retomada do caráter imperial da Rússia e seu antiocidentalismo militante

§  Tudo isso convergiu para clivagens da sociedade estadunidense; essas clivagens têm-se aprofundado cada vez mais, sem sinal de que possam reverter-se no curto e no médio prazo

§  Tudo isso também convergiu para a vitória de um político agressivamente “populista”, nacionalista, isolacionista, excludente, xenófobo, reacionário, estimulador da teologia política – o republicano outsider Donald Trump

§  Trump afirma-se com clareza e orgulho que é “conservador” e de “direita”

·         Trump é tão agressivo e tão extremos em suas posturas que até mesmo George W. Bush considera-o radical

o   Apesar de Trump, os democratas não deixaram de lado o identitarismo e mesmo uma postura agressiva internacionalmente (como no caso de Hillary Clinton); mas, antes, com Barack Obama, e depois, com Joe Biden, assumiram uma postura de apoio aos trabalhadores dos EUA e de internacionalismo – embora sem o apelo direto junto às massas que Trump apresenta

-        Em suma:

o   Falar de democratas e republicanos dos EUA é importante porque essa é uma clivagem cada vez mais profunda nesse país e que temos cada vez mais importado para o Brasil

o   A dicotomia direita-esquerda mudou de sentido ao longo do tempo; não há um sentido único para ela; apesar disso, forçando um pouco os raciocínios filosóficos e históricos, pode-se dizer que a esquerda tem maiores preocupações sociais e com o progresso, enquanto a direita preocupa-se mais com a ordem

o   Os sentido dos democratas e dos republicanos dos EUA mudou ao longo do tempo, em que as posições direita-esquerda variaram (ou nem seriam aplicáveis)

§  A vinculação do partido democrata com a esquerda começou nos anos 1930, com Franklin Roosevelt

§  A vinculação explícita do partido republicano com a direita começou, ou foi muito reforçada, nos anos 1980, com Ronald Reagan

§  Trump em particular tem conseguido forçar cada vez mais o partido republicano e a direita dos EUA no sentido do exclusivismo, do particularismo, da teologia cristã, do isolacionismo, de um populismo “branco”