12 março 2024

O altruísmo é sempre apenas a satisfação do egoísmo?

No dia 16 de Aristóteles de 170 (12.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, devido à sua extrema importância, retomamos e respondemos pormenoridamente à questão: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/2r8u0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Y4lxn). O sermão começou efetivamente em 1h 06 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se transcritas abaixo.

*   *   *


O altruísmo é sempre apenas a satisfação do puro egoísmo? 

-        Durante a prédica do dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) retomamos inicialmente as máximas morais apresentadas por Augusto Comte no início da décima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime privado

o   Após retomarmos a máxima positivista – “Viver para outrem” –, surgiu uma interessante dúvida: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Essa dúvida não apenas é intelectualmente interessante; ela também é moral e praticamente importante, pois diz respeito a como realizamos o altruísmo e à orientação subjetiva que damos às nossas ações

o   Além disso, é importante notar que, também do ponto de vista intelectual, essa questão é central para o Positivismo, pois tem a ver com como descrevemos as relações entre o altruísmo e o egoísmo de diferentes pessoas

o   Assim, mesmo repetindo vários temas e várias observações que fizemos na semana passada e mesmo hoje, devido à importância central do tema julgamos importante dedicar todo um sermão a ele

-        Comecemos por lembrar as características da nossa máxima “Viver para outrem”:

o   Antes de mais nada: a palavra “outrem” significa “outro”, ou “outros”

o   A fórmula positivista é superior à máxima antiga (“Agir com os outros como gostaria de ser tratado”) e à medieval (“Amar o próximo como a si mesmo”)

§  Essas duas máximas apresentam uma certa evolução, na medida em que passam da conduta externa (na fórmula antiga) para a motivação subjetiva (fórmula medieval)

§  Entretanto, como é bastante claro, essas duas fórmulas concentram-se no egoísmo: não se trata de afirmar e realizar o altruísmo, mas apenas de satisfazer o egoísmo e de mais ou menos regular o egoísmo alheio

§  Ambas as fórmulas, e em particular a segunda, baseiam-se no amor divino, que é especialmente egoísta, antissocial e anti-humano

o   O “viver para outrem” orienta a vida de cada um diretamente para o altruísmo

§  Lembrando a máxima de Clotilde (“Que prazeres podem exceder os da dedicação?”), resulta que a lei do dever é também a fórmula da felicidade

-        Passemos ao que nos interessa hoje; comecemos lembrando que o “viver para outrem” tem duas partes:

o   O “viver para outrem”, que consiste na orientação altruísta do conjunto da vida humana e na definição de um critério claro para definirmos todas as pequenas, médias e grandes decisões que temos que tomar no dia a dia

§  É nessa parte que consiste a lei do dever

o   O “viver para outrem”, que consiste em que cada um de nós tem que estar vivo, e em boas condições de saúde física e mental, para podermos dedicar-nos aos outros

§  Assim, essa parte consiste em garantir que os agentes humanos existam e, portanto, ela garante a satisfação do egoísmo de cada um

·         A esse respeito, nota Augusto Comte que a orientação para o altruísmo não pode consistir na negação do egoísmo, com isso indicando que não devemos autoflagelar-nos (e, ainda menos, não devemos suicidar-nos)

§  A satisfação do egoísmo, nesse sentido, portanto, consiste na condição objetiva (e até subjetiva) para a realização do altruísmo

§  Entretanto, é fundamental termos clareza de que essa satisfação do egoísmo tem que se submeter à regra do dever, ou seja, ao estímulo do altruísmo e à compressão do egoísmo

·         Sem tal entendimento, a fórmula torna-se incoerente e imoral

·         A satisfação do egoísmo subordina-se à realização do altruísmo; assim, tal satisfação consiste em uma condição (para o altruísmo) e não de um objetivo em si mesmo

·         A felicidade que devemos buscar não consiste na satisfação egoísta de algo abstrato chamado “felicidade”: a felicidade que devemos, e que podemos, buscar consiste em nossa dedicação para os demais

·         Todas as formas de hedonismo enquadram-se na satisfação do egoísmo por si só, mesmo que sob o rótulo enganador de “felicidade pessoal”

o   Em outras palavras, o hedonismo é uma via egoísta e individualista – e, portanto, ilusória – de busca da felicidade

o   Lembramos aqui o caráter profundamente egoísta do hedonismo porque ele é uma característica das sociedades ocidentais contemporâneas

§  As sociedades ocidentais assim combinam o estímulo sistemático de inúmeras formas de egoísmo e individualismo com o estímulo ao desejo de consumo (na maior parte das vezes de produtos e serviços inúteis), em algo que, adotando a terminologia metafísica do marxismo, poderíamos chamar de “capitalismo hedonista”

-        Enfrentemos, agora, a pergunta inicial: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Em uma primeira aproximação, sim: nossas ações buscam satisfazer necessidades alheias

§  Mas esta primeira aproximação é bastante grosseira e, como veremos, é também bastante superficial

o   Entretanto, não devemos nem podemos considerar que a lei do dever consiste em atos altruístas satisfazendo puros egoísmos, pois isso pressupõe (ou deixa de pressupor) várias coisas e implica (ou deixa de implicar) outras tantas:

§  Antes de mais nada, essa concepção – de que a lei do dever no fundo é um altruísmo satisfazendo egoísmos puros – desconsidera o caráter relacional do ser humano, em particular no sentido de que as concepções morais têm que ser generalizadas

·         Nesse sentido, essa concepção desconsidera a noção de dever, isto é, de responsabilidades mútuas, válidas de todos para com todos

§  Em segundo lugar, essa concepção desconsidera o aspecto elementar de que a lei do dever e da felicidade vale tanto para mim (que sou, ou que devo ser, altruísta) como para os demais, que também devem ser altruístas

§  Em terceiro lugar, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo (no “viver” do “viver para outrem”) tem que se limitar pelo e subordinar-se ao altruísmo

·         Nesse sentido, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo alheio ocorre não para o estímulo desse egoísmo, mas como condição para que essas outras pessoas possam desenvolver o altruísmo

§  Em quarto lugar, devemos notar que as nossas ações altruístas não são sempre nem necessariamente dirigidas para indivíduos específicos, mas que muitas vezes elas têm um foco coletivo e menos específico (de tal sorte que, nesse sentido, elas não satisfazem nenhum egoísmo em particular)

·         As políticas públicas são exemplos fáceis desse caráter difuso de muitas das ações altruístas

·         Mas é claro que, tanto antes quanto depois das políticas públicas, muitas das nossas ações altruístas individuais também apresentam um caráter difuso

§  Em quinto lugar, considerando as características do regime público no Positivismo, devemos notar que a educação positiva tem que estimular o altruísmo; dessa forma, cria-se uma orientação geral na sociedade em favor do altruísmo, evitando que as ações altruístas individuais visem apenas, ou principalmente, a satisfazer o puro egoísmo dos outros

§  Em sexto lugar, também temos que lembrar que o altruísmo realiza-se na prática por meio de ações de aperfeiçoamento

·         Tais ações tornam concreto o altruísmo e evitam que ele degenere em vaguezas místicas

·         O aperfeiçoamento tem vários âmbitos: material, físico (biológico), intelectual e moral

·         Esses aperfeiçoamentos podem, e devem, tornar-se diretamente altruístas por si sós, mesmo que muitas vezes eles tenham que ocorrer em indivíduos específicos

-        Devemos reforçar três aspectos específicos ao apreciarmos a concepção de que “o altruísmo sempre satisfaz o puro egoísmo alheio”

o   Em primeiro lugar, afirmarmos a primazia do altruísmo sobre o egoísmo é algo tanto descritivo quanto prescritivo, ou seja, tanto corresponde à realidade dos fatos quanto, a partir desse caráter descritivo, é também uma recomendação moral e prática

§  Em outras palavras: a orientação moral e prática do “viver para outrem” não é uma fórmula puramente “filosófica”, puramente “teórica”: ela baseia-se na realidade dos fatos, ou melhor, na realidade da natureza humana, conforme ela desenvolveu-se transparece ao longo da história e com base em pesquisas sociológicas e da chamada neurociência

§  Como vimos nos itens acima, o altruísmo generalizado tem (1) uma base sociológica: ele baseia-se no desenvolvimento histórico, em pressões sociais, em valores compartilhados, em práticas coletivas

§  Além disso, esse altruísmo generalizado tem (2) uma base moral, neurocientífica: o altruísmo é generalizável em termos de natureza humana, ao contrário do egoísmo; o altruísmo consegue dominar e orientar o conjunto da existência humana (ou seja, realiza a unidade moral), ao contrário do egoísmo

o   Em segundo lugar, ainda em termos sociológicos e morais, a concepção do “altruísmo como apenas a satisfação do puro egoísmo alheio” deixa de lado o caráter relacional do ser humano, ou seja, deixa de lado o seu aspecto social e concentra-se na concepção “ego-cêntrica”, que entende que a sociedade é apenas a justaposição de indivíduos (que, portanto, reduzem-se aos seus egoísmos)

o   Em terceiro lugar, em termos de história das idéias, essa concepção individualista tem origem metafísica e, como sabemos, difundiu-se muito a partir do liberalismo, com todas as filosofias e “ideologias” de origem metafísica mais recente (como a doutrina dos “direitos humanos”, o marxismo, os próprios liberalismos econômico e político etc.)

§  Nesse sentido, a importância central de responder à questão baseia-se no fato de que ela surge naturalmente do ambiente metafísico que caracteriza o conjunto do Ocidente nas últimas décadas (ou seja, desde o final da II Guerra Mundial e que reforça tendências críticas e negativas que, por sua vez, têm alguns séculos de existência)

§  Podemos dizer, então, que a importância de responder à questão que motivou este sermão, mesmo repetindo temas e concepções que têm sido apresentados nas últimas semanas, deve-se a que é necessário afirmar as concepções positivistas contra a imaginação sociológica metafísica atualmente disseminada

05 março 2024

O que significa a palavra "positivo"?

No dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão abordamos a palavra "positivo".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/27kuc) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/0itua). O sermão começou aos 51 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão disponíveis abaixo.

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O que significa a palavra “positivo”? 

-        Na prédica do dia 2 de Aristóteles de 170 (27.2.2024) procuramos responder de maneira elementar à questão: “o que é o espírito positivo?

o   Na ocasião apresentamos características gerais do espírito positivo em si; para isso, fizemos referência à palavra “positivo”, cujos sentidos definidos por Augusto Comte apenas citamos, sem nos estender a respeito

o   Então, aproveitaremos esta prédica para tratar especificamente da palavra “positivo”, comentando com algum vagar cada um dos seus sentidos

§  Também faremos algumas observações adicionais sobre a palavra “positivo” e sobre um certo emprego cotidiano de espírito positivo

o   Um aspecto que de modo geral é bastante claro no Positivismo e que se tornará muito evidente ao tratarmos da expressão “positivo” é a ambigüidade (ou polissemia) intencional de muitas palavras empregadas por Augusto Comte

§  Essa polissemia constitui a riqueza do Positivismo e permite também o que Angèle Kremer-Marietti chamou de “método caleidoscópico” para entender o Positivismo

-        Esta prédica terá duas partes um pouco distintas, que mantêm relação entre si, mas não são decorrentes uma outra:

o   Inicialmente trataremos mesmo da palavra “positivo”;

o   Em seguida abordaremos dois outros temas que valem a pena citar por si sós, mas que guardam uma relação um pouco indireta com o tema principal desta prédica:

§  Buscar a “positividade” em vez de apenas o Positivismo

§  Um processo administrativo que busca(va) a propriedade intelectual da palavra “positivo” no Brasil

-        Comecemos notando que a expressão “conhecimento positivo” foi inicialmente utilizada por Francis Bacon (1561-1626) – por exemplo, em seu Novum Organon (1620) –, referindo-se precisamente aos conhecimentos positivos, no sentido amplo de “real”, “certo”

-        Dito isso, Augusto Comte tratou dos sentidos da palavra “positivo” em pelo menos duas ocasiões: no Discurso sobre o espírito positivo (1844) e, depois, no Apelo aos conservadores (1855)

o   Embora seja uma definição posterior, começaremos pela do Apelo, por ser mais completa e mais “canônica”

-        Eis o trecho em que Augusto Comte apresenta no Apelo (p. 25) os sentidos da palavra “positivo”:

“A nova síntese pode ser previamente caracterizada mediante uma suficiente combinação entre as sete qualificações irrevogavelmente condensadas sob o título positivo, que de hoje em diante significa ao mesmo tempo real, útil, certo, preciso, orgânico, relativo e mesmo simpático. Comparando-se especialmente cada uma delas com a seguinte, o primeiro par indica as condições fundamentais, o segundo os atributos intelectuais e o terceiro as propriedades sociais da doutrina universal; a sucessão delas conduz a assinalar a fonte moral dessa doutrina pela acepção final”.

-        Antes de tratarmos dos sentidos específicos da palavra “positivo”, é importante lembrarmos que eles não são apenas intelectuais, ou melhor, não são intelectualistas

o   A palavra positivo refere-se às nossas concepções quaisquer, que servem para esclarecer os sentimentos e orientar as atividades práticas (conforme, por exemplo, a máxima “agir por afeição e pensar para agir”)

-        Comparando cada sentido com seu sentido oposto, podemos organizar o parágrafo acima neste quadro:

 

N.

Acepção

Opõe-se a

Estatuto teórico

1.                    

Real

Irreal (fictício)

Condições fundamentais

2.                    

Útil

Inútil

3.                    

Certo

Incerto

Atributos intelectuais

4.                    

Preciso

Vago

5.                    

Relativo

Absoluto

Propriedades sociais

6.                    

Orgânico

Crítico

7.                    

Simpático

Antipático (ou egoísta)

Fonte moral

FONTE: o autor, a partir de Comte (1899, p. 25-28).

 

-        Essa seqüência é a que se constituiu do ponto de vista histórico; mas, como toda classificação positiva, ela pode ser lida tanto de baixo para cima (da realidade para a simpatia) quanto de cima para baixo (da simpatia para a realidade):

“As sete acepções do termo fundamental da sã filosofia [positivo] são de tal maneira solidárias que a sucessão delas poderia igualmente ser instituída conjugando cada uma com a precedente para terminar na primeira, posto que a marcha que acabo de seguir seja historicamente preferível” (p. 27-28)

-        A organização dos sentidos em pares corresponde à prescrição de Augusto Comte de raciocinar, sempre que possível, a partir de oposições duais

o   O par fundamental é real e útil; são duas condições que fundam os sentidos mas que se completam: ou melhor, a segunda limita a primeira:

§  O real corresponde ao que existe efetivamente ou ao que se baseia na realidade; é um atributo ao mesmo tempo intelectual e prático

·         O real opõe-se ao irreal, ou ao quimérico

§  O útil delimita o âmbito do real àquilo que pode servir para o melhoramento das condições do ser humano; é um atributo acima de tudo prático, embora evidentemente tenha aspectos intelectuais e até afetivos

·         O útil opõe-se ao inútil, ou ao ocioso

·         Evidentemente, o critério fundamental da utilidade é a utilidade social, ou seja, as melhorias que podem surgir para a sociedade

·         Essas melhorias são, pela ordem de facilidade decrescente e de importância/dignidade crescente: materiais, físicas (biológicas), intelectuais e acima de tudo morais

§  Eis o que Augusto Comte comenta a respeito da utilidade (p. 26):

“Mas, no estado normal, a utilidade deve sempre completar a prescrição fundamental, pois que a maioria das pesquisas verdadeiramente acessíveis são essencialmente ociosas. A filosofia prática adiantou-se, sob esse aspecto, à filosofia teórica; porque a condição inicial achando-se aí espontaneamente preenchida, a atenção teve que concentrar-se sobre a outra, que não podia ser abstratamente apreciada antes de nossa plena madureza”

§  Em uma abordagem inicial podemos entender a utilidade como um critério restritivo da realidade, que se vê, assim, limitada; mas os desenvolvimentos posteriores do Positivismo – em particular, os da Síntese subjetiva (1856) – orientam esses parâmetros para direções um pouco diferentes:

·         Devemos insistir que a utilidade afirmada aqui é a utilidade social; dessa forma, mais que restringir a realidade, a utilidade estimula diretamente o altruísmo, ao orientar as concepções quaisquer para o servir aos outros

·         Da mesma forma, a realidade não deve ser entendida como um critério restritivo: as concepções humanas devem respeitar a realidade, embora não necessariamente se aferrar a ela: o que mais importa é que as concepções não desrespeitem a realidade

o   Nesses termos, a utilidade pode – e deve – inspirar concepções que auxiliam o ser humano, que não são em si mesmas “reais” (isto é, existentes), mas que, em seu caráter imaginativo, não desrespeitam a realidade

·         A definição de “lógica positiva” segue precisamente esses parâmetros ampliados:

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal [Sistema de política positiva]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na página 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao fim que assinala” (Síntese subjetiva, p. 26).

·         Uma aplicação prática dessas concepções ampliadas de realidade e utilidade no âmbito da lógica positiva corresponde à Trindade Positiva: são concepções úteis, imaginativas e que não desrespeitam a realidade

o   O segundo par corresponde aos “atributos intelectuais”: certeza e precisão

§  Como vimos no sentido geral que Francis Bacon atribuiu à palavra “positivo”, além da realidade, ele entendia-a como significando “certa”

§  A certeza e a precisão muitas vezes são confundidas, mas a primeira é mais importante que a segunda

·         Um exemplo simples esclarece a diferença: todos temos certeza de que morreremos algum dia, mas não temos precisão de quando isso ocorrerá

§  Assim, a certeza opõe-se à incerteza, ou à vagueza

§  A precisão opõe-se à imprecisão

o   Os sentidos quinto e sexto constituem as “propriedades sociais” da palavra “positivo”: são o relativo e o orgânico

§  Na verdade, bem vistas as coisas, esses dois sentidos são não apenas sociais, mas são também intelectuais e morais

§  O relativo opõe-se a absoluto; ele indica por um lado que o ser humano constitui-se por meio de relações e, por outro lado, que só conhecemos o que é relativo (ou seja, relacional)

·         O relativismo é um atributo exclusivo da positividade e do conhecimento positivo

§  O orgânico opõe-se ao que é crítico ou destruidor

·         O aspecto orgânico, ou construtivo, da positividade era implícito quando da constituição das ciências inferiores; mas a partir do momento em que a Sociologia e a Moral passaram a estar em questão, esse atributo (organicidade) teve que se manifestar de maneira explícita (e até militante)

·         Embora a teologia possa ter uma ação destruidora, a organicidade opõe-se mais claramente à metafísica

·         Vejamos o que Augusto Comte diz a respeito desses dois atributos (p. 26-27):

“Antes de sua extensão decisiva aos fenômenos sociais, o espírito positivo se havia sempre mostrado profundamente orgânico; aspirando por toda parte a construir, ele não afastou as causas senão substituindo-lhes as leis, sem desenvolver, em caso algum, um caráter diretamente crítico. Mas esta aptidão manifestou-se sobretudo desde que ele se apoderou de seu principal domínio, reparando as devastações que a impotência teológica e a discussão metafísica tinham gradualmente infligido ao conjunto das noções sociais. O caráter relativo, por toda parte inerente à sua tendência orgânica, teve que prevalecer especialmente em sua construção da filosofia da história, necessariamente incompatível com a natureza absoluta da antiga síntese”.

o   O último sentido é o simpático; ele opõe-se a antipático, a egoísta, a estritamente racionalista

§  A simpatia é o aspecto-síntese de todos os atributos e indica a fonte e a destinação morais do Positivismo

§  Como indicamos acima, a seqüência dos sete atributos pode ser lido de baixo para cima (da realidade para a simpatia), conforme o critério histórico, quando de cima para baixo (da simpatia para a realidade) conforme o critério moral

§  Vejamos o que Augusto Comte diz a respeito da simpatia (p. 27-28):

“A conexidade íntima destas duas propriedades [organicidade e relativismo] permite apreciar como é que elas se ligam à qualidade final, única contestada hoje pelos positivistas incompletos. Porquanto, é tão impossível ficarmos relativos sem tornarmo-nos simpáticos, como ficarmos orgânicos sem tornarmo-nos relativos, sobretudo a respeito do campo principal de nossas concepções, em que só o amor nos dispõe a construir e nos permite apreciar. As sete acepções do termo fundamental da sã filosofia [positivo] são de tal maneira solidárias que a sucessão delas poderia igualmente ser instituída conjugando cada uma com a precedente para terminar na primeira, posto que a marcha que acabo de seguir seja historicamente preferível”

-        Antes dessa explicação, ele já esboçara uma outra, um pouco menor (com seis atributos) e um pouco diferente, no Discurso sobre o espírito positivo (1844)

 

N.

Acepção

Opõe-se a

1.                    

Real

Irreal (fictício)

2.                    

Útil

Inútil

3.                    

Certo

Incerto

4.                    

Preciso

Vago

5.                    

Construtivo

Destrutivo (ou negativo)

6.                    

Relativo

Absoluto

 

o   As duas diferenças entre a relação acima (de 1844) e a apresentada antes (de 1855) são estas:

§  Em 1844 Augusto Comte empregava a palavra “construtivo” no lugar de “orgânico”

§  Em 1844 não havia menção à palavra “simpático”

·         É importante termos clareza de que a ausência da simpatia na relação acima não corresponde à ausência desse atributo nas concepções comtianas, como fica extremamente claro no “Prefácio” que Paul Arbousse-Bastide escreveu para esse livro[1]

·         Esse autor nota que desde o final da década de 1830, no curso oral de filosofia positiva e no curso de Astronomia popular, Augusto Comte afirmava a base moral-afetiva da racionalidade humana

-        Agora que vimos os sentidos da palavra “positivo”, ainda tratando um pouco dela, podemos mudar de âmbito de reflexão

o   O que nos interessa considerar agora não é exatamente uma aplicação prática e específica da positividade, mas um comportamento que vale a pena ser estimulado e que tem a ver com a positividade

o   Enfim: um hábito muito comum que costumamos adotar quando viramos positivistas: procurar em livros, textos, notícias etc. referências a Augusto Comte, ao Positivismo, à Religião da Humanidade

§  Não há dúvida de que essa procura é importante por si só

§  Entretanto, ela costuma esgotar-se em si mesma, isto é, na mera procura de referências a nós

§  Além de esgotar-se em si mesma, ela apresenta um aspecto negativo, no sentido de que, caso o autor do documento não cite Augusto Comte (e/ou o Positivismo e/ou a Religião da Humanidade) ou, no caso de citar, faça uma citação errada, uma referência negativa etc., tal citação conduz a que tendamos a desconsiderar a obra em questão

§  Essa desconsideração não é injustificada, na medida em que o Positivismo estabelece parâmetros morais, políticos e intelectuais de avaliação e, portanto, na medida em que uma obra qualquer desconsidera ou despreza o Positivismo, o que essa obra faz é desconsiderar ou desprezar esses parâmetros positivos de avaliação

§  Entretanto, por outro lado, a despeito dos possíveis (e, com freqüência, efetivos) deméritos das obras que nos criticam, o fato é que nós não podemos abrir mão dos nossos próprios parâmetros de conduta e de sua aplicação, em particular o relativismo

o   Dessa forma, mais que procurar apenas o “Positivismo”, convém também, ou mais, procurar a positividade

§  A procura da positividade e não só do “Positivismo” rende mais porque não se limita a perguntas de sim/não (há ou não referências? Elas são corretas ou não? Elas são favoráveis ou não?), mas, de maneira mais ampla, permite avaliar o grau de aproximação conosco e, assim, permite estabelecer um diálogo – em particular em obras que, mesmo que não nos citem, de diferentes maneiras aproximam-se de nós

-        Para concluir esta prédica, uma última observação sobre um emprego específico da palavra “positivo” no Brasil:

o   No Brasil as leis de propriedade intelectual permitem que palavras de uso comum sejam registradas por empresas particulares

o   Assim, há alguns anos o grupo Positivo quis registrar para si as palavras “positivo” e “positividade”

§  A intenção dessa pretensão é explorar comercialmente a palavra e controlar o seu uso público – em particular contra o Positivismo no Brasil

§  Evidentemente, em tal pretensão, nós, positivistas, estaríamos impedidos de usar a palavra que nos define em termos religiosos, filosóficos, políticos morais

§  A pretensão do grupo Positivo estendia-se não apenas à palavra “positivo”, mas às suas flexões e, por extensão, também a “positivismo”!

o   É necessário dizê-lo com todas as letras: evidentemente, embora isso seja permitido pela lei, isso é um verdadeiro crime moral

o   A legislação brasileira deveria seguir o exemplo da de países como a Coréia do Sul, que veda o registro comercial das palavras comuns, exigindo o emprego comercial apenas de palavras “novas”, como “blu-ray” no lugar de “blue-ray”

-        Em suma:

o   A palavra “positivo” tem sete sentidos, que devem ser necessariamente conjugados para que ela faça sentido efetivo: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

§  Isso indica a riqueza do Positivismo, por meio de uma intensa polissemia

o   No âmbito da positividade, uma aplicação pequena mas importante é a substituição do hábito espontâneo de buscar referências ao Positivismo, a A. Comte, à Religião da Humanidade pelo hábito de procurar traços de positividade nas obras

§  É claro que tal substituição não se dá negando os erros, as críticas, os problemas de quem nos cita (e cita errada e/ou negativamente)

o   A legislação comercial brasileira permite que – contra o bem público e contra o Positivismo – palavras comuns tornem-se propriedade intelectual de empresas privadas, que passam a controlar e a explorar o seu uso

§  Entre essas palavras está “positivo”, que é objeto da ambição do um grupo comercial

§  Embora seja legal, isso é totalmente imoral

§  Evidentemente, no que se refere a esse aspecto, a legislação comercial brasileira é imoral e atenta contra os mais elementares interesses universais e públicos         



[1] ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. 1990. A grande iniciação do proletariado. In: COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: M. Fontes.